sábado, 30 de junho de 2018

41 - A INDÚSTRIA DOS VENENOS E A SANTÍSSIMA TRINDADE


Passou algum tempo desde que relatei o episódio da morte do cómico gordo, no restaurante Traquitanas, não se sabe se pela força das muitas bifanas ingeridas ou pelas mãos de um qualquer homicida que se tenha enfiado, sorrateiramente, na casa de banho fatídica para extinguir, de forma misteriosa, a comicidade hiperbólica do desgraçado. O dedo acusador do Conde ou Lord ou Hugo Boss, como lhe queiram chamar, disparou a culpa na direção e no sentido do padre Tortulho mas a verdade é que, depois da autópsia, nenhum perito nas artes do retalhamento dos corpos, foi capaz de decidir qual tinha sido a verdadeira causa da expiração definitiva daquela alma, sobrecarregada, durante longos anos, pelo avantajamento da massa adiposa. Talvez algum composto químico ainda desconhecido, algum veneno imperceptível, escondido malevolamente nas catacumbas do sagrado Vaticano, por herança das artes da cruel Locusta, que ajudava os imperadores romanos a despacharem os seus antagonistas para a vida eterna, de modo perfeitamente discreto. Por isso o padre, embora tenha passada uma noite na cela a jogar paciências com cartas, a recitar em voz alta os ensinamentos bíblicos e a pedir perdão para o Conde e o Abrantes, teve ordem de libertação bem cedinho, por falta de paciência do juiz com a ausência de provas. Ainda foi ministrar a missa da manhã na Igreja da paróquia. Consta que olhou com grande desconfiança para o sangue de cristo, derramado, como era hábito, no cálice de moscatel roxo de Setúbal com que realizava o sacramento.
O Firmo Formigal discutiu com a Vera, a jovem médica-legista de olhos azuis como opalas, pele leitosa e cabelos cor de trigo, bem como com a inspectora Zé Pereira, a ligação da arte dos venenos às mulheres, ao império romano e à Santa Madre Igreja Católica e Apostólica. Contrariamente às suas interlocutoras, que viam a origem de todo o mal na natureza masculina, o filósofo polícia serviu-se da inesquecível envenenadora gaulesa, que migrou para a cabeça do grande império e negociou mortes por encomenda com metade dos ricalhaços de Roma, para justificar a influência feminina na proliferação da arte de matar sem espalhafato. Locusta é, segundo o Firmo, a grande responsável pelo desenvolvimento dos dois maiores poderes da história ocidental. Agripina e Nero que o digam.
A dimensão feminina de Locusta encontra-se na importância do número três, que é claramente o da mulher. Basta pensar na triangularidade maternal. Na verdade, o três está também associado aos venenos através das necrópsias, para não lhes chamar autópsias, pois não é o morto que se disseca a si próprio.
O Firmo sabe que a aplicação desta palavra é ideológica, está contaminada pelo ideal socrático: ao abrir o corpo do morto o homem conhece-se a si mesmo, descobre-se a partir das vísceras do outro. “Cada vez estou mais convencido da natureza feminina dos ensinamentos de Sócrates” resmungou o Firmo. Na técnica do exame dos mortos, que começou por se concentrar na procura de indícios de venenos, são abertas as três cavidades relevantes do corpo humano: a craniana, a torácica e a abdominal. As conclusões são óbvias: a Igreja Romana, herdeira das artes de Locusta, tornou-se misógina para esconder o excesso de sabedoria feminina, especialmente associada ao número três. Céu, purgatório e inferno? Pai, Filho e Espírito Santo? Crucificação, ressurreição e ascensão? Adão, Eva e serpente? Tudo isto evidencia, segundo o Firmo, o espírito feminino da Santa Madre Igreja e a sua origem na indústria dos venenos. E se o padre Tortulho não foi o envenenador deve ter andado lá muito perto!
— Sim, sim, nomeadamente isso! — Exclamou o Chefe Abrantes que acabara de se sentar à mesa com eles, no café Tendinha.

sexta-feira, 2 de março de 2018

40 - O MELHOR ESCONDERIJO É ATRÁS DO CABO DE UMA VASSOURA


Estou de novo com os meus sapatinhos ecco, um coletinho xpto e o cabelo ainda alinhado pela vaidosa insistência dos dentes do meu pente Tomas Veres, feito de vistosa prata e que acomodo religiosamente na sua dispendiosa case de couro de avestruz colorido de azul. Na verdade, sinto-me arreitado, paramentoso, acasquilhado, janota, enfarpelado, já que as minhas propriedades, nestas situações, não regateiam sinónimos — torno-me um samouco de primor. Tenho de fazer aqui um reparo ao fio da minha narração: por lapso da memória indiquei o Safari como o local da morte do cómico gordo, cantor e adepto fervoroso do Benfica — justificava o seu clubismo pelo facto de a mãe ser muito avantajada e Benfica querer dizer “filho de uma calmeirona”. Na verdade, o último suspiro ocorreu nas casas de banho do Restaurante Traquitanas, como dissera anteriormente. A memória é uma coisa lixada, um zêzere indómito que, na sua turbulência excessiva, quer galgar as margens e recriar continuamente o seu leito. Conheci uma senhora idosa que desenvolveu a ideia de que, quando saía para o seu jardim em roupas íntimas, se podia esconder dos seus vizinhos atrás do cabo de uma vassoura, se eles falavam com ela julgava que eram malucos e tinham alucinações — pois como é que podiam vê-la se ela se escondia assim desde criança e sabia perfeitamente que se tornava invisível!?
Convém fazer aqui outra correção, de pouca importância, é certo, mas necessária para manter a precisão: quando a inspetora Zé Pereira afirmou que a bela rapariga estereotipada se preparava para fazer a autópsia ao morto, isso não significa que a iria realizar ali, é um modo de enfatizar, a moça entusiasmava-se, de tal forma, com a dissecação dos corpos que, mal tomava conhecimento da desgraça alheia, ficava inebriada com os preparativos mentais das ações de retalhamento dos músculos e das vísceras, nomeadamente, como diria o Chefe Abrantes. Sei que o Firmo chegou a discutir com ela a confusão que muitas vezes se gera entre os termos encetar e enxertar, pois muitas pessoas julgam que a primeira ação é encetar mas não é, a primeira é enxertar, introduzir as ferramentas no corpo frio e só depois é que se enceta, começando a tirar metodicamente as porções de tecido necessárias à investigação. “Temos de ser rigorosos” rosnava o Firmo, amante extremo de todo o esmiuçamento da realidade.
Quando o Conde, também apelidado de Lord e Hugo Boss, apontou o seu dedo indicador direito que, embora impecável e elegante, não possuía meias luas — a inspetora Zé Pereira, na sua versão astróloga, sabia muito bem que a falta delas era sinal inequívoco de afeções físicas e mentais — quando ele esticou o indicador, repito, todos lhe seguiram ansiosamente a direção e o sentido, para descobrirem quem fora o assassino e ilibar as bifanas. O dedo disparava, como uma arma, o projétil da culpa direitinho para o peito do padre Tortulho.
Fez-se silêncio.
“Você?! Foi você nomeadamente!?” Exclamou o Abrantes.
“Eu? Estão doidos ou quê? Estive sempre com vocês.”
“Não é verdade!” Contrariou o Formigal. “Desapareceu do Safari pelo menos 10 minutos. Lembro-me bem.”
“Ora essa! Fui à casa de banho. Também tenho necessidades, faço como os outros, Deus não livra os padres da m…”
O Tortulho, embora membro da Santa Amada Igreja, disse mesmo o palavrão, todos o ouviram, era soft na boca de pessoas profanas mas na boquinha de um padre tinha a dimensão dos Himalaias.
  “Como é que eu tive tempo para cometer o crime? E porquê fazê-lo se ele sempre foi o meu melhor amigo?”

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

39 - A LUTA DE CLASSES À PORTA DO CAFÉ SAFARI

Saíram todos numa confusão tal, que o Abrantes teve de acalmar o grupo, pleonasmando: "Sosseguem, sosseguem, que isto assim até parece, nomeadamente, uma anarquia sem chefes!"
Diante da porta, como numa absurda homenagem ao cómico gordo, que tantas vezes ficara entalado, também aquela molhada estava incapaz de a franquear.
O Chefe Abrantes estabeleceu prioridades. Primeiro ele, depois o Padre, depois o Firmo, por fim o Canelas. Não sei se havia mais pessoas. Talvez o Cê, não? Mas como ficou claro, no episódio anterior, que a memória é apenas uma farsa e um instrumento de opressão, era o que me faltava que fosse agora preocupar-me com isso.
Chegados ao Safari, depararam-se com a situação que a Inspectora Zé Pereira continuou a narrar.
O gordo estava à porta (notem, porque pode não ser irrelevante, que, nesta história, há sempre portas...), deitado no chão, camisa aberta, o enorme bandulho saltando das calças, uma palidez cadavérica, que levou Abrantes a concluir: "Está, nomeadamente, morto de todo."
Inclinada sobre ele, encontrava-se uma bela rapariga. A Zé Pereira parecia ter engolido um guia de clichês, descrevendo-a: "Olhos azuis como opalas, pele leitosa, cabelos cor de trigo." Analisava o pobre homem, e preparava-se para lhe fazer a autópsia.
"Aqui?!", espantou-se o Firmo.
"Tem de ser. Não há tempo a perder", ouviu-se a uma voz de barítono, que impunha respeito.
Olharam para o proprietário da voz. Era realmente um proprietário. Um homem de um grisalho sofisticado, unhas tratadas, anel de brasão, boquilha, fato feito à medida.
Estavam perante um mito encarnado. Havia quem lhe chamasse o Conde, quem lhe chamasse o Lord, ou apenas Hugo Boss. Era o inspector mais temido, e respeitado, e medalhado, e invejado, na polícia portuguesa. Mas até os franceses e os ingleses o mencionavam com temor e consideração. Parece que os belgas também.
Chefe Abrantes aproximou-se dele. Encontravam-se frente a frente, o Chefe muito mais baixo, desleixado, envelhecido, a perder cabelo e dentes, fumaçando beatas.
"Fazer uma autópsia porque o homem, nomeadamente, comeu de mais, que diabo!?"
"Aí é que está", retorquiu a voz polida, com um quase imperceptível tom de ironia: "Não acredito que tenha sido um acidente. Ele não comeu de mais! As bifanas é que o comeram!"
"Prendemos então, nomeadamente, as bifanas-assassinas?", zombou Abrantes.
Formigal, observando o despique, terá pensado de si para si: Meu Deus! Isto é a ilustração, no particular, da luta de classes. Aposto em Abrantes, apesar de tudo. O futuro pertence-lhe.
"Não", respondeu o Conde. "As bifanas foram o instrumento do crime. E eis o assassino."
Um dedo impecável, de uma elegância inconcebível, esticou-se e apontou.

domingo, 4 de fevereiro de 2018

38 - A GRANDE MENTIRA DA MEMÓRIA E UM CÓMICO MORTO ATAFULHADO DE BIFANAS

Há muito tempo que não escrevia com uns sapatinhos ecco, um coletinho xpto e o cabelinho bem alinhado. Vou adequar a minha narração ao meu estado vestimenteiro.
Quando bateram à porta, o Abrantes acabara de confrontar o padre com as suas suspeitas.
“Sei que é homem de Deus, nomeadamente, que diabo, mas tenho de lhe dizer que estou muito desconfiado de si. Esta história dos ellog, deus me perdoe, nomeadamente, que diabo, ainda acicata mais os meus barruntos. Parece não estar bom da cabeça! Lamento ofendê-lo mas vai ter de me esclarecer, de forma clara e verdadeira, nomeadamente sem mentir, onde é que estava enquanto ocorreram os lamentáveis homicídios que vitimaram tanta gente, nomeadamente as vítimas.”
Foi só nesse momento, recordo-me agora, que o sacerdote exclamou que os ellogs estavam a chegar.
Tenho de falar aqui, pois julgo ser o momento perfeito para isso, das cogitações sobre a memória desenvolvidas pelo Firmo Formigal. Na verdade, diz ele, tal coisa não existe, é uma invenção criada pela desigualdade social para manter os privilégios dos ricos e acomodar os miseráveis. O primeiro homem que, como muito bem visionou Rousseau, se apaixonou pelo direito de primeiro ocupante e decidiu tornar-se sujeito acumulador de bens, criou duas ferramentas para o conseguir: a ideia de memória e o conceito de lei. Munido destas duas armas implacáveis, ei-lo que partiu, com os seus pares, à monstruosa conquista da vaidade.
O Firmo comove-se com a crueldade que acompanhou o desenvolvimento das sociedades primitivas, Alguns seres humanos tornaram-se donos dos outros, fundamentados na criação de leis e no conceito de dívida, instrumentalizando a força jurídica e a guerra. O direito é a arma mais eficiente dos poderosos: é, incomparavelmente, a que traz mais resultados com menos custos. Com essa ferramenta bélica, os detentores da riqueza e da propriedade produzem uma outra arma poderosíssima: a ideologia. Pelo sortilégio da contaminação ideológica da memória, os mais privilegiados conseguem fazer com que as suas regalias sejam defendidas pelo resto da sociedade. Eles já não têm de se preocupar com os seus bens, os outros tratam disso, mesmo que não possuam nada de seu, mesmo que sejam mais pobres do que muitos animais selvagens.
A lei, ao criar o sucesso exagerado de alguns, gera nos restantes uma doença irrefreável, um veneno obsessivo, uma compulsão para defender a ideologia que é a fonte das suas desigualdades, misérias e alienações. Os que pouco ou nada têm de valor vivem na expectativa do reforço vicariante e fixam-se numa tripla ilusão: a primeira é a do topo, a da possibilidade de virem a ser iguais aos que estão acima deles; a segunda é a da perda, a de que se a lei não for respeitada poderão perder o pouco que têm e tornarem-se ainda mais desfavorecidos, tristes, pobres e miseráveis; a terceira é a da moralidade, o sentimento de que existe uma ordem que transcende as convenções humanas e que dá uma significação profunda ao sistema jurídico. Mas nada disto seria possível sem a ideia execrável de memória. A velha ilusão de que esta recolhe, arquiva e recupera é a invenção mais estapafúrdia, ou espatafúrdia, como dizem no café safari, de todas as que já adulteraram a sanidade da criação. É um tumor obsceno que fomenta a gangrena da vida social, que devia ser uma comunidade de seres criativos e livres e não passa de um rebanho de arquivistas. Os vampiros chupadores da populaça fortaleceram até a dispersão da ideia através da promoção das escolas e dos sistemas de ensino. As crianças começam a ser maltratadas muito cedo, por volta dos cinco anos de idade. Fecham-nas em salas sombrias durante quase todo o dia e impedem-nas de brincar, instruindo-as simplesmente com coisas de adultos, fastidiosas para a maior parte delas. Não podem falar livremente e são ensinadas a replicar conhecimentos, atitudes, ideologias, normas e hábitos. Obrigam-nas a permanecer assim durante doze anos, comparando-as continuamente umas com as outras, promovendo, nelas, sentimentos profundos de inferioridade e discriminando severamente as mais inseguras e as que não conseguem suportar o sistema e se revoltam. O ensino é, toda a gente sabe isso, uma estratégia horrível de domesticação social, uma forma de reproduzir os comportamentos facilitadores do sistema económico e social predominante, uma forma de pregar o catecismo do blá...blá... da memória. Até existe uma artimanha intelectual que se chama História e que pretende fazer crer na objetividade do passado! “Saiam dessa!” Avisa o Firmo. A cabeça do ser vivo não precisa de arquivo, quer fantasia e liberdade. As pedras sim, estão próximas da memória perfeita.
Admiro a sabedoria discursiva do Firmo, devo confessar. Mas o mais extraordinário é que às vezes quero que ele desenvolva mais o assunto mas o safardana olha-me com ar assarapantado e pergunta-me “Que Memória? Não me lembro!”
        Voltando àquela noite, que já me dispersei bastante, depois de baterem à porta e o Chefe Abrantes mandar entrar, não irromperam por ali dentro os ellog, como parecia esperar o padre Tortulho, mas entrou simplesmente o guarda Canelas, rosado e esbaforido, que disse:

       “Depressa Chefe! O Gordo está morto na casa de banho do restaurante Traquitanas, sufocado, atafulhado com bifanas pela goela abaixo!”

sábado, 20 de janeiro de 2018

37 - UM EPISÓDIO ESCRITO SÉCULOS DEPOIS DO ÚLTIMO EPISÓDIO


Visto a t-shirt e mudo o meu modo de narrar. De repente, nesta diversa personalidade, quase um heterónimo, recordo-me do nome da proprietária do Safari. É Judite. Ou... hum... Laura?
Bem, deixemos isso.
O Abrantes pegou no Padre pelo cotovelo, no Firmo pelo braço, e levou-os à bruta para longe dali. Queria uma reunião em silêncio. Infelizmente, pela janela do gabinete para onde os levou, na esquadra, que não era longe do Safari, entravam ainda as inclementes fadistices do gordo, que com um auditório cada vez maior, decidiu que não se calaria tão cedo. Talvez fizesse daquilo profissão. Cantarolaria, um chapéu no chão para onde deixassem cair moedas, porventura um guitarrista.
"E quando a morte se foi", entoava o maganão, "do meio da multidão, reunida como uma praga, uma voz um tanto gaga, perguntava em contramão, ó morte, que apagas a vida mais sã, quando vens tu outra vez, virás hoje, ou amanhã, ou só no próximo mês?"
Vou prender este tipo, insurgia-se Abrantes.
Firmo Formigal mandou-o calar. Homem, disse-lhe. Isto é filosofia da mais pura. Há mais Heidegger num fado português do que em centenas de tratados sobre a sua obra.
Oiçam, impôs-se Chefe Abrantes. Eu estou preocupado, nomeadamente, com a série de crimes. Preciso do culpado. O resto não importa.
Nada disto tem o menor significado, sacudiu, o Padre, uma melancólica cabeça. Quando chegarem os Ellog, que estão aí à porta...
E nesse momento, a porta abriu-se.

segunda-feira, 26 de junho de 2017

36 - QUAL É AFINAL O NOME DA MULHER?


Os que lerem este processo documental sobre a insólita experiência do morticínio que assolou esta terra dar-se-ão conta de que, quando o narrador, que sou eu, escreve para clarificar a sequência, utiliza estilos de discurso muito diferentes, mas, de fato, sou sempre um e, de t-shirt, outro, mudo a minha forma de escrever de acordo com o vestuário que uso, e também penso de maneira muito diversa, e vejo coisas, às vezes até me parece que sou mais do que uma pessoa, sempre me aconteceu isto, chegaram a dizer que eu era esquizofrénico, a gente sofre muito nesta vida, às vezes são todos em cima, a picar, a picar, e ninguém acredita em nós se nos queixamos.
Segundo afirma Pereira, a inspetora, quando a patroa do Safari, a dona Isilda, ou Laura, enfim, um nome parecido com estes, ouviu o padre dizer que vinham lá os Ellog, franziu o sobrolho
— Se vêm, batem com o nariz na porta. Hoje quero fechar mais cedo.
O Chefe Abrantes revoltou-se, pois estava a ver o fio da sua investigação partir-se com a má vontade da Hirondina, a patroa do Safari, ou Laura, não sei bem.
— Que raio! Então isto está sempre aberto, indevidamente, diga-se em abono da verdade, até às duas da manhã e hoje, que está a abarrotar de clientes, nomeadamente, vossemecê quer fechar o café às onze? Deixe-se de tretas, guarde a faca e vá para dentro fazer negócio.
Nessa altura a Guilhermina, ou Hirondina, ou Laura, não me lembro bem do nome, mas isso não é importante, confessou que queria fechar mais cedo porque o Virote, que era de Miranda do Corvo e tinha cara de osga, estava em casa dela a cozinhar negalhos, um petisco feito na sua terra, com tripas de cabra aos pedacinhos a encher o bucho do mesmo animal, uma iguaria que ele, na sua ingénua bazófia transmontana, garantia ser a melhor do universo.
Irra! — Rosnou o Abrantes. — Deixe os namoricos para mais tarde, senão ainda mando fechar isto nomeadamente, pois não tem condições.
A mulher achou por bem não afrontar a autoridade e encaminhou-se para a porta. Porém, viu que esta estava atravancada pelo cómico F. Mendes, entalado por causa do bandulho cheio de febras de porco.
— Tirem-me daqui este emplastro! — Rosnou.
O pessoal que se encontrava dentro da tasca empurrou brutalmente o gordo e este desencaixou-se, caindo e rolando pela calçada. Levantou-se como se tivesse molas e desatou a cantar.
“Na estrada do ribeirão, faleceu um cão, de patas para o ar, passou lá o frei João e julgou que o cão estava a rezar, deitou joelhos ao chão e maravilhado pôs-se em oração, e perdeu toda a noção, foi atropelado por um camião.”
— Irra! — Gritou o Chefe. — Como é que se pode investigar o que quer que seja, nomeadamente porra nenhuma?
O cómico pôs-se a dar voltas, ostentando um equilíbrio do caraças e, como já tinha uma grande audiência de olhos avinhados e de sorrisos fumarentos, decidiu cantar um fadinho em honra do senhor padre, que o tinha acompanhado na comezaina.
“Na igreja da Conceição, estava um padre no sermão, quando a morte apareceu, levou o padre pela mão, deitou-lhe o corpo no chão, coitadinho faleceu. O povo, escandalizado, protestou indignado pelo fim da pregação: morte não sejas assim, leva esse padre no fim, deixa acabar a oração. Ao ver tanta devoção, a morte trouxe-o pela mão, pra fortalecer a fé. Quando acabou o sermão, deitou-o de novo ao chão, foi aplaudida de pé.”
— Vivam os ellog, senhor padre! — Gritou o cómico, depois do fado.
Olharam todos em volta e não viram sinal do sacerdote, para desconsolo do Abrantes. O Firmo Formigal tecia considerações metafísicas sobre a situação. O Jacinto do Cê recusava bater palmas ao cantor, a dona do Safari, talvez afinal se chame Marcolina, não sei bem, resmungava que queria ir comer os negalhos do Virote…

— Vamos mas é embora deste inferno! — Exclamou o Chefe, exasperado pela balbúrdia da investigação que, nomeadamente, não era investigação nenhuma.

terça-feira, 13 de junho de 2017

35. AFIRMA PEREIRA


A inspectora Zé Pereira afirma que o Chefe Abrantes não chegou a ter tempo para desenvolver as suas ideias, porque o Padre, precisamente o Padre acerca do qual se falava, acabara entretanto de chegar ao Safari.

Afirma Pereira que se fez um silêncio confrangedor, que é o género de silêncio que se instala sempre que, quando se fala nas costas de uma «certa e determinada pessoa», sucede que, precisamente, a «certa e determinada pessoa» em causa aparece, de supetão, no lugar em que a conversa decorre.

Afirma Pereira que o que passou imediatamente pela cabeça do Chefe terá sido que, o seu desígnio, inesperadamente, e por obra dos astros, afinal se realizava. Ali estavam, pois, Cê, o Padre e Formigal, não propriamente numa sala de interrogatório, mas no Café Safari, onde eu próprio tantas vezes me deliciei com uns caracóis à Bulhão Pato, e... ai, cala-te boca, cala-te boca, pára de salivar, ó boca cheia de tantas e tão boas memórias, que ainda te arriscas a avariar aqui esta geringonça!

Afirma Pereira que a patroa, apanhada de surpresa, de faca na mão, pelo Padre, que ela não sabia que não era já um padre normal há muito tempo, se lhe ajoelhou aos pés, começando a chorar como uma Madalena.

Afirma Pereira que o Chefe interveio. (Pereira disse-me: «interviu».)

Afirma Pereira que, nomeadamente para aqui, nomeadamente para ali, o Chefe retirou a faca à senhora, sentou, com modos algo bruscos, o Padre numa cadeira, calou o Cê com nada mais do que um único e ferocíssimo olhar, tranquilizou o Formigal com a promessa de que poderia inventar, para a investigação em curso, o maior, o melhor, o mais criativo, o mais cúbico, o mais estapafúrdio (Pereira dizia: «espatafúrdio»), o mais eufórico, o mais glorioso, o mais louvável, o mais rico de todos os nomes de que o seu brilhante espírito fosse capaz.

Afirma Pereira que, quando o Chefe ia dar início ao seu discurso, à Poirot, o cómico gordo apareceu intempestivamente, a correr muito devagarinho, como apavorado; porém, não conseguia entrar pela porta. Cê levantou-se para o ajudar, enquanto Firmo Formigal, já inteiramente mergulhado em si próprio, não tinha ouvidos senão para as ideias que o seu tempestuoso e sublime cérebro disparava de si para si.

Afirma Pereira que, entalado na porta, o cómico gordo berrava: «Eles vêm aí! Eles vêm aí!»

Afirma Pereira que a patroa, de imediato, se reapoderou da faca, que o chefe pousara simplesmente sobre a mesa.

Afirma Pereira que alguém (ela não podia, por escrúpulo, precisar de qual deles se tratava, até porque não se encontrava «in loco») perguntou: «Mas quem diabo vem aí, criatura!?»

Afirma Pereira que, então, o Padre, por sua vez, se ergueu, de olhos iluminados como um profeta (ou, mais provavelmente, como um maluquinho), e disse:

«Os ellog. Chegaram os ellog!»