Visto a t-shirt e mudo o meu modo de narrar. De repente, nesta diversa personalidade, quase um heterónimo, recordo-me do nome da proprietária do Safari. É Judite. Ou... hum... Laura?
Bem, deixemos isso.
O Abrantes pegou no Padre pelo cotovelo, no Firmo pelo braço, e levou-os à bruta para longe dali. Queria uma reunião em silêncio. Infelizmente, pela janela do gabinete para onde os levou, na esquadra, que não era longe do Safari, entravam ainda as inclementes fadistices do gordo, que com um auditório cada vez maior, decidiu que não se calaria tão cedo. Talvez fizesse daquilo profissão. Cantarolaria, um chapéu no chão para onde deixassem cair moedas, porventura um guitarrista.
"E quando a morte se foi", entoava o maganão, "do meio da multidão, reunida como uma praga, uma voz um tanto gaga, perguntava em contramão, ó morte, que apagas a vida mais sã, quando vens tu outra vez, virás hoje, ou amanhã, ou só no próximo mês?"
Vou prender este tipo, insurgia-se Abrantes.
Firmo Formigal mandou-o calar. Homem, disse-lhe. Isto é filosofia da mais pura. Há mais Heidegger num fado português do que em centenas de tratados sobre a sua obra.
Oiçam, impôs-se Chefe Abrantes. Eu estou preocupado, nomeadamente, com a série de crimes. Preciso do culpado. O resto não importa.
Nada disto tem o menor significado, sacudiu, o Padre, uma melancólica cabeça. Quando chegarem os Ellog, que estão aí à porta...
E nesse momento, a porta abriu-se.
sábado, 20 de janeiro de 2018
37 - UM EPISÓDIO ESCRITO SÉCULOS DEPOIS DO ÚLTIMO EPISÓDIO
segunda-feira, 26 de junho de 2017
36 - QUAL É AFINAL O NOME DA MULHER?
Os
que lerem este processo documental sobre a insólita experiência do morticínio
que assolou esta terra dar-se-ão conta de que, quando o narrador, que sou eu,
escreve para clarificar a sequência, utiliza estilos de discurso muito
diferentes, mas, de fato, sou sempre um e, de t-shirt, outro, mudo a minha forma
de escrever de acordo com o vestuário que uso, e também penso de maneira muito diversa,
e vejo coisas, às vezes até me parece que sou mais do que uma pessoa, sempre me
aconteceu isto, chegaram a dizer que eu era esquizofrénico, a gente sofre muito
nesta vida, às vezes são todos em cima, a picar, a picar, e ninguém acredita em
nós se nos queixamos.
Segundo
afirma Pereira, a inspetora, quando a patroa do Safari, a dona Isilda, ou
Laura, enfim, um nome parecido com estes, ouviu o padre dizer que vinham lá os
Ellog, franziu o sobrolho
— Se vêm, batem com o nariz na porta. Hoje
quero fechar mais cedo.
O Chefe Abrantes revoltou-se, pois estava a
ver o fio da sua investigação partir-se com a má vontade da Hirondina, a patroa
do Safari, ou Laura, não sei bem.
— Que raio! Então isto está sempre aberto,
indevidamente, diga-se em abono da verdade, até às duas da manhã e hoje, que
está a abarrotar de clientes, nomeadamente, vossemecê quer fechar o café às
onze? Deixe-se de tretas, guarde a faca e vá para dentro fazer negócio.
Nessa altura a Guilhermina, ou Hirondina, ou Laura,
não me lembro bem do nome, mas isso não é importante, confessou que queria
fechar mais cedo porque o Virote, que era de Miranda do Corvo e tinha cara de
osga, estava em casa dela a cozinhar negalhos,
um petisco feito na sua terra, com tripas de cabra aos pedacinhos a encher o
bucho do mesmo animal, uma iguaria que ele, na sua ingénua bazófia
transmontana, garantia ser a melhor do universo.
— Irra!
— Rosnou o Abrantes. — Deixe os namoricos para mais tarde, senão ainda mando
fechar isto nomeadamente, pois não tem condições.
A mulher achou
por bem não afrontar a autoridade e encaminhou-se para a porta. Porém, viu que
esta estava atravancada pelo cómico F. Mendes, entalado por causa do bandulho
cheio de febras de porco.
— Tirem-me
daqui este emplastro! — Rosnou.
O pessoal que
se encontrava dentro da tasca empurrou brutalmente o gordo e este
desencaixou-se, caindo e rolando pela calçada. Levantou-se como se tivesse
molas e desatou a cantar.
“Na estrada do
ribeirão, faleceu um cão, de patas para o ar, passou lá o frei João e julgou
que o cão estava a rezar, deitou joelhos ao chão e maravilhado pôs-se em oração,
e perdeu toda a noção, foi atropelado por um camião.”
— Irra! —
Gritou o Chefe. — Como é que se pode investigar o que quer que seja,
nomeadamente porra nenhuma?
O cómico
pôs-se a dar voltas, ostentando um equilíbrio do caraças e, como já tinha uma grande
audiência de olhos avinhados e de sorrisos fumarentos, decidiu cantar um
fadinho em honra do senhor padre, que o tinha acompanhado na comezaina.
“Na igreja da
Conceição, estava um padre no sermão, quando a morte apareceu, levou o padre
pela mão, deitou-lhe o corpo no chão, coitadinho faleceu. O povo,
escandalizado, protestou indignado pelo fim da pregação: morte não sejas assim,
leva esse padre no fim, deixa acabar a oração. Ao ver tanta devoção, a morte
trouxe-o pela mão, pra fortalecer a fé. Quando acabou o sermão, deitou-o de
novo ao chão, foi aplaudida de pé.”
— Vivam os
ellog, senhor padre! — Gritou o cómico, depois do fado.
Olharam todos
em volta e não viram sinal do sacerdote, para desconsolo do Abrantes. O Firmo
Formigal tecia considerações metafísicas sobre a situação. O Jacinto do Cê
recusava bater palmas ao cantor, a dona do Safari, talvez afinal se chame Marcolina,
não sei bem, resmungava que queria ir comer os negalhos do Virote…
— Vamos mas é
embora deste inferno! — Exclamou o Chefe, exasperado pela balbúrdia da
investigação que, nomeadamente, não era investigação nenhuma.
terça-feira, 13 de junho de 2017
35. AFIRMA PEREIRA
A inspectora Zé Pereira afirma que o Chefe Abrantes não chegou a ter tempo para desenvolver as suas ideias, porque o Padre, precisamente o Padre acerca do qual se falava, acabara entretanto de chegar ao Safari.
Afirma Pereira que se fez um silêncio confrangedor, que é o género de silêncio que se instala sempre que, quando se fala nas costas de uma «certa e determinada pessoa», sucede que, precisamente, a «certa e determinada pessoa» em causa aparece, de supetão, no lugar em que a conversa decorre.
Afirma Pereira que o que passou imediatamente pela cabeça do Chefe terá sido que, o seu desígnio, inesperadamente, e por obra dos astros, afinal se realizava. Ali estavam, pois, Cê, o Padre e Formigal, não propriamente numa sala de interrogatório, mas no Café Safari, onde eu próprio tantas vezes me deliciei com uns caracóis à Bulhão Pato, e... ai, cala-te boca, cala-te boca, pára de salivar, ó boca cheia de tantas e tão boas memórias, que ainda te arriscas a avariar aqui esta geringonça!
Afirma Pereira que a patroa, apanhada de surpresa, de faca na mão, pelo Padre, que ela não sabia que não era já um padre normal há muito tempo, se lhe ajoelhou aos pés, começando a chorar como uma Madalena.
Afirma Pereira que o Chefe interveio. (Pereira disse-me: «interviu».)
Afirma Pereira que, nomeadamente para aqui, nomeadamente para ali, o Chefe retirou a faca à senhora, sentou, com modos algo bruscos, o Padre numa cadeira, calou o Cê com nada mais do que um único e ferocíssimo olhar, tranquilizou o Formigal com a promessa de que poderia inventar, para a investigação em curso, o maior, o melhor, o mais criativo, o mais cúbico, o mais estapafúrdio (Pereira dizia: «espatafúrdio»), o mais eufórico, o mais glorioso, o mais louvável, o mais rico de todos os nomes de que o seu brilhante espírito fosse capaz.
Afirma Pereira que, quando o Chefe ia dar início ao seu discurso, à Poirot, o cómico gordo apareceu intempestivamente, a correr muito devagarinho, como apavorado; porém, não conseguia entrar pela porta. Cê levantou-se para o ajudar, enquanto Firmo Formigal, já inteiramente mergulhado em si próprio, não tinha ouvidos senão para as ideias que o seu tempestuoso e sublime cérebro disparava de si para si.
Afirma Pereira que, entalado na porta, o cómico gordo berrava: «Eles vêm aí! Eles vêm aí!»
Afirma Pereira que a patroa, de imediato, se reapoderou da faca, que o chefe pousara simplesmente sobre a mesa.
Afirma Pereira que alguém (ela não podia, por escrúpulo, precisar de qual deles se tratava, até porque não se encontrava «in loco») perguntou: «Mas quem diabo vem aí, criatura!?»
Afirma Pereira que, então, o Padre, por sua vez, se ergueu, de olhos iluminados como um profeta (ou, mais provavelmente, como um maluquinho), e disse:
«Os ellog. Chegaram os ellog!»
segunda-feira, 5 de junho de 2017
34. GALINHAS PERNETAS, UM BANDULHO CHEIO DE FEBRAS E UM APERTO DE MÃO “PEIXE MOLHADO”
Embora
gostasse de me anular, a mim, o narrador, de me limitar a recolher e a
organizar as pérolas documentais que engordam este caso retumbante, que
assombrou as cabeças de todos os que deram conta da sua existência, a verdade é
que, de vez em quando, sinto que este processo necessita do meu contributo
narrativo para esclarecer a sequência e edulcorar a brutalidade insólita dos
acontecimentos. Todo o material que aqui divulgo tem origem na investigação
realizada a posteriori (malditos
filósofos!) pela minha prezada amiga inspetora Zé Pereira, pessoa de
elevadíssimo gabarito intelectual, que acumula, com a profissão de polícia,
muitas outras competências, tais como cartomante, astróloga, quiromante,
massagista, apreciadora de vinhos e técnica de endireitação de pernas de
galinha. Poderão pensar, aqueles que
me lerem, que esta última competência é mesquinha, ridícula mesmo, mas a verdade
é que ela exige uma técnica muito fina e rigorosa, que não está ao alcance da
chusma. A inspetora concretiza esta
sabedoria prática do conserto das pernas das aves na aldeia de Bico Calado, uma
povoação que se destaca ali para os lados da Lourinhã, conhecida pelo facto de
todos os habitantes adorarem galinhas vivas e as deixarem andar em liberdade,
debicando as ervas e quase tudo o que encontram, tornando quase todos os
recantos visíveis desprovidos de vegetação, pequenos mamíferos, repteis,
insetos e caracóis... Por isso não é de estranhar que a alimentação usada por
essas bandas seja constituída por peixe e ovos. Sempre que chega lá, ao fim de
semana, a nossa inspetora tem à sua espera vários animais com os ossos das
pernas, nomeadamente, como diria o Chefe Abrantes, tíbias e fíbulas,
fracturados por atropelamentos, dentadas de cães vadios, lutas de galos,
atração por buracos indevidos e pontapés de rapazes vindos de outras aldeias e
que jogam à bola com elas antes de os donos darem por isso e os expulsarem,
também ao pontapé. Pele de toucinho, tiras de cana, azeite, cascas de ovo e
ráfia são os únicos materiais que ela usa, mas com uma capacidade regenerativa
que roça a perfeição. Muitos tentaram, durante a sua ausência, arremedar esta
prática, mas os resultados foram sempre os mesmos: galinhas com um coto a ver o
chão do alto e a perna boa a tentar afanosamente muscular-se para aguentar
sozinha com o peso do animal.
Segundo o que eu ouvi à inspetora, e que faz
todo o sentido, o Chefe Abrantes conseguiu juntar, na esplanada do café Safari,
o Cê e o Firmo Formigal, na tentativa desesperada de uma frase inspiradora que
lançasse alguma luz no seu entendimento, cada vez menos fecundo.
A primeira coisa de que o Cê falou não tinha nada que ver com os homicídios, tratou-se apenas de informar o Abrantes de que tinha visto um comediante muito gordo, de nome F. Mendes, filho de outro comediante muito gordo que fazia o público rir por mostrar a barriga, entrar no restaurante Traquitanas, que fica do outro lado da rua, atafulhar-se de febras e bebida e ficar entalado na porta quando se preparava para sair, tiveram de vir os bombeiros de Alcabideche para o desentalarem — como era um artista trouxeram a fanfarra — e isto era mais uma prova de que o Cê é o maior, não ele, Jacinto, mas o verdadeiro Cê, ninguém escapa à sua vigilância e à sua balança compensatória, cá se fazem cá se pagam, muito riso traz choro e muito choro traz riso e quer se trate de comédia ou de tragédia apenas há que bater palmas ao maior, que é o Cê.
A primeira coisa de que o Cê falou não tinha nada que ver com os homicídios, tratou-se apenas de informar o Abrantes de que tinha visto um comediante muito gordo, de nome F. Mendes, filho de outro comediante muito gordo que fazia o público rir por mostrar a barriga, entrar no restaurante Traquitanas, que fica do outro lado da rua, atafulhar-se de febras e bebida e ficar entalado na porta quando se preparava para sair, tiveram de vir os bombeiros de Alcabideche para o desentalarem — como era um artista trouxeram a fanfarra — e isto era mais uma prova de que o Cê é o maior, não ele, Jacinto, mas o verdadeiro Cê, ninguém escapa à sua vigilância e à sua balança compensatória, cá se fazem cá se pagam, muito riso traz choro e muito choro traz riso e quer se trate de comédia ou de tragédia apenas há que bater palmas ao maior, que é o Cê.
— Que diabo é que isso tem a ver com os
homicídios, nomeadamente? — Exasperou-se o Abrantes.
— Porra, Chefe! As mortes também são do Cê!
Sabes quem é que estava a comer febras com o cómico? Nomeadamente…não sabes!
Era o padre, o gajo a quem batem palmas. Estás a ver?
— Ah! O padre! Nomeadamente o padre. Sempre o
padre! Não me cheira bem, nomeadamente aqui. E você, Firmo? O que acha?
— Sim, parece mesmo vomitado.
— Chiça, as mortes, falo das mortes,
nomeadamente as dos que morreram mesmo!
O Firmo começou então a derramar a sua
incomensurável intelectualidade no cérebro confuso do Abrantes. O caso ainda se
apresentava totalmente indecifrável porque não tinha nome. Contrariamente ao
que as pessoas vulgares pensam, os nomes não são simples etiquetas, não, eles
têm o poder de transformar a realidade, ser Firmo não é o mesmo que ser
Flácido, as palavras entranham-se nas coisas e insuflam-lhes uma nova forma de
existir. Quando andava na Faculdade, por exemplo, a aprender Filosofia, os
professores possuíam características idênticas às das pessoas comuns: um cuspia
perdigotos enquanto falava entusiasticamente de Descartes, outro dava aulas
sentado e baixava-se a toda a hora para mexer nos atacadores dos sapatos, outro
ainda bebia cerveja e esbugalhava os olhos, outro comia as alunas com os olhões,
existia também outro que ficava com os movimentos suspensos enquanto a caspa se
acumulava nas enormes golas da sua camisa preta… Se os alunos atentassem apenas
nestes comportamentos, debandariam rapidamente dali para encontrar algo mais
promissor. Mas não era o que eles diziam ou faziam que tinha realmente
importância, o que interessava era terem o nome de Professores Doutores de Filosofia.
Era aí que tudo ganhava sentido. Também as operações policiais têm de possuir
um nome para terem esperança de sucesso. O Firmo ensinara isso a milhares de
investigadores e ele próprio nomeara várias dessas investigações: apito ferrugento,
chave torta, fidalgo paralítico, primos maralha, limpeza sebenta, cabeça de
galhos… Tantos, tantos nomes! E tudo com sucesso! Depois de apelidar a operação
o Chefe Abrantes tinha de compreender várias coisas sine qua non valia a pena marrar mais, a saber: distinguir pessoas
de coisas e de outros animalejos; conhecer bem os quatro pontos cardeais e
entender que há sempre um portal para uma nova dimensão; não abusar das
secreções da próstata porque enfraquecem o raciocínio; aceitar qualquer pista,
mesmo as de motociclismo; procurar alguém que dê um aperto de mão do tipo peixe
molhado, porque esse tem sérias possibilidades de ser o assassino, excepto se
não o for, o que é muito pouco provável se tivermos fé.
— Porra! — Exclamou, por esta altura, o
Abrantes, cada vez mais confuso. — Que raio é isso de peixe molhado?
— São aqueles gajos que fazem a mão mole e
suada para cumprimentar os outros. E fria. Há muitos.
— Mas o padre não cumprimenta assim!
— Nunca se sabe, nunca se sabe, pode estar a
esconder-se — aclarou o Firmo.
Olharam os três para o lado, em simultâneo, e
repararam que a dona do Safari, a Laura, estava ao lado deles com uma enorme
faca pontiaguda na mão, era a primeira vez que a viam cá fora.
— Tenho de arrumar as cadeiras. É tarde.
— Porquê a faca? — Perguntou o Chefe.
— Nunca se sabe. É melhor prevenir do que
remediar.
sexta-feira, 2 de junho de 2017
33. O INTELECTUAL
O Chefe Abrantes andava confuso. E profundamente ansioso.
Ouvia o Cê, por um lado (a falar-lhe nos donos disto tudo), e começou a pensar que este mundo era realmente muito complexo! Por outro lado, havia o padre, que se intitulava o Papa de uma estranha organização, dessas que profetizam apocalipses; e que dizer dos assassinatos por solucionar? E do seu IRS por preencher? E dos problemas com o seu filho, que andava pelos caminhos da perdição - concretamente, ligado a uma organização de tráfico de bananas da Madeira? E tudo, e tudo?
Por essa altura, teve a genial ideia de recorrer a Firmo Formigal.
Firmo era um intelectual. Tendo-se licenciado em Filosofia, coitado! e não encontrando emprego no melancólico mercado de trabalho português, onde os lugares para filósofos não abundam propriamente, acabara por aceitar uma posição na polícia. A posição era: sentado. Ao menos isso.
Nunca se pensou que Firmo Formigal tivesse as qualificações para singrar na polícia. Mas a verdade é que aconselhava agentes stressados; escreveu uma sebenta de psicologia, por onde os formandos tinham de estudar coisas relacionadas com: 1. lidar com pessoas; 2. detectar, pela expressão do rosto e pela mímica, quando o interrogado era inocente ou culpado. [Por exemplo: se a pessoa principiava a suar, estava com certeza a mentir, a não ser que suasse - há sempre excepções - mesmo que estivesse a ser sincero!]; 3. etc.
Mas o grande, grande, grande triunfo de Firmo Formigal, foi a criatividade demonstrada na invenção de nomes de difíceis e megalómanas operações. Oh, meu Deus! Rendamo-nos ao humor e à subtileza. Lembram-se de «Operação Apito Dourado»? Foi ideia dele. «Operação Irmãos Metralha»? Dele. «Limpeza de Pele», «Operação Bombokas», «Operação Ide Passear e Beber água»? Dele, dele, dele.
Chefe Abrantes foi, pois, aconselhar-se.
Encontrou-o a beber uma água sem gás, enquanto relia uma passagem particularmente confusa de Sein und Zeit. Lá estava Firmo, sempre sentado. Grisalho, barbudo, magríssimo, com a pele pouco cuidada.
A ideia de Chefe Abrantes resumia-se, se ouso assim exprimir-me, ao seguinte disparate: reunir o padre louco e o eminente Cê numa sala de interrogatório - para quê? Não me interessa, o próximo escritor que descalce a bota! -, sob o olhar perscrutador de Firmo Formigal, o intelectual. Ele que o ajudasse.
Se a isto se pudesse acrescentar um nome sonante para a operação em curso, seria ouro sobre azul.
segunda-feira, 22 de maio de 2017
32. O CÊ É O DONO DISTO TUDO
O Cê é o dono disto tudo
(monólogo do JC com o chefe Abrantes
à porta do café Safari)
Olha Abrantes,
sei que andas desconfiado do Padre e tens razões para isso, essa gente não é de
confiança, dizem que são pastores mas, cá para mim, são mas é lobos, e dos maus,
todos me chamam Jacinto do Cê porque sabem que para mim o dono disto tudo é o
Cê, desculpa estar com este rameuméu mas é a mais pura das verdades, o pessoal
sabe disso muito bem, basta ouvir as conversas do dia-a-dia para o perceber,
tudo pertence ao Cê, os animais, as plantas, os filhos, as mulheres, os amigos,
a vida, o mundo, o próprio Cê, porra!, toda a gente diz que pertence a ele
próprio, é por isso que eu fico raivoso quando vejo baterem palmas aos padres, ou
a qualquer outro que não seja o Cê, quando andei na tropa também era a mesma trampa, chegava
o coronel ou o simples tenente e pronto, toda a gente estava em sentido,
batendo palmas a qualquer bazófia que lhes saía da boca, só o Chaimite é que
não ligava nenhuma, era magro como um esqueleto e ruço e mijava na cama, tinha
os dentes da cor da caca das crianças e estava sempre a tirar macacos do nariz,
a enrolá-los e a ameaçar limpá-los à farda do mais próximo, ria, mostrando
aquelas tacholas enormes, e quando passava o coronel ele não se punha em sentido,
metia os ossos da mão no bolso roto das calças e acariciava o fueiro, "estou
a batê-las" dizia, enquanto os outros lambiam as botas do coronel, por
fim acharam que era maluco e mandaram-no para casa, à saída do quartel ele voltou-se e riu, num riso asmático,
mostrando as dentuças amarelentas, tirou um macaco do nariz, amassou-o bem e
colou-o, com todo o cuidado, nos ferros do portão, e depois lá foi, rindo e
massajando o fueiro, feliz da vida por não bater palmas, no oeste americano
ninguém batia palmas ao Jesse James e o Jesse James era o maior, sacava das
pistolas com a rapidez de um foguete e bum, bum, era só matar, eles caíam no
pó como espantalhos, uma vez chegou a uma cidade e estavam oito à espera dele, desceu do cavalo, coçou-lhe o
focinho, prendeu-lhe as rédeas, os outros estavam cagados de medo, e então ele
voltou-se como um diabo, antes de sacar as pistolas já as tinha nas mãos, deu
um salto enorme, cuspindo chumbo, e eles começaram a cair com a admiração
estampada na cara e a vida a esgotar-se por um buraco entre os olhos, ficaram
estendidos no pó da rua, e o Jesse James soprou o fumo das pistolas, meteu-as
nos coldres, passou por entre a multidão batendo com os tacões, entrou no salão,
que era o Safari lá do sítio, e pediu um uísque duplo, bebeu de um trago, saiu,
olhou tudo e todos com desprezo, montou o cavalo e afastou-se a trote, e só
então o povo arranjou coragem para bater palmas, bateu durante a tarde inteira,
até o cangalheiro esqueceu o seu trabalho, até os mortos se levantaram para
mandar com as mãos uma na outra, o Napoleão, que foi talvez o gajo mais esperto
que já existiu, a seguir ao Cê, nunca batia palmas a ninguém e era o maior,
era o Jesse James francês, foi ao Egito e trouxe de lá um calhau com cem
toneladas e agora todos os que passam por Paris gritam "olha o calhau do
Napoleão", mas ele nunca batia palmas a ninguém, trazia sempre a mão
direita enfiada no casaco, e essa mão tinha seis dedos, um deles enorme que
servia para enfiar no rabo de todo o mundo, só foi lixado pelos comunistas,
apanharam-no no meio da neve, cheio de frio e mataram-lhe os soldados todos, mas
não se atreveram a tocar-lhe, o Dom Afonso Henriques também não batia palmas a
ninguém, nasceu já com a sua espada enorme na mão, dizem que abriu caminho
através da barriga da mãe e que foi um dos primeiros a nascer de cesariana
invertida, na verdade ele nunca gramou a progenitora, passava o tempo a
fazer-lhe tropelias e a ameaçá-la com a espada e quando cresceu dava-lhe cada
coça que até fervia, mas o que ele queria mesmo era matar mouros, se estava
muito bem a descansar depois de uma conquista e ouvia falar de um castelo de
sarracenos endiabrava-se, montava-se no cavalo e lá ia ele a galope, brandindo
o espadalhão faiscante, tinha mais força do que um urso porque a espada pesava mais
de vinte quilos, todos fugiam à frente dele mas a admiração pela sua passagem
era tanta que logo decidiam segui-lo, pessoas, animais terrestres e aves corriam
ou voavam atrás dele num alarido medonho que espavoria os mouros, foi assim que
o nosso primeiro rei conquistou este país, e dizem que, no seu modo abrutalhado
de lidar com tudo, tinha um cavalo a quem chamava porco quando queria
espevitá-lo, e querendo que este corresse mais depressa gritava “porco
galllll”, o que, querendo dizer “porco galopa”, foi entendido como Portugal e
todos pensaram que era o nome do país que queria conquistar, o nosso rei
fundador foi uma categoria, um verdadeiro homem do Cê, por isso é que eu digo,
Abrantes, a malta de boa cepa desconfia dos padres.
sábado, 13 de maio de 2017
31 - UM KARDECISTA DA TRETA
Padre
Tortulho, o senhor não passa de um kardecista da treta, uma estrumeira de
ilusões, um bandulho de flatulências malcheirosas. Sorva rapidamente caudais de
infusões carminativas para expulsar essa purulência que lhe estupidifica o
cérebro e o faz indigno de ser gente.
Sim,
vossemecê deve andar possuído pelos espíritos daquelas raparigas irmãs que, há
quase cento e setenta anos, espalharam a maluqueira espírita pela crendice
americana, só por dizerem que ouviam estalidos e portas a ranger e viam os móveis
a passear pela casa. Grande coisa! A minha prima Genoveva também assistiu a
fenómenos semelhantes: começou a ouvir ruídos inusitados às seis da manhã,
levantou-se para averiguar a origem e, quando deu por ela, estava amarradinha a
uma cadeira e amordaçada, a ver passar todos os bens que tinha acumulado em
casa. Mas não foram os espíritos, não, foram os irmãos Gadunhas, acabadinhos de
sair da prisão do Linhó. Quando eu tinha dez anos, talvez por ler muitos livros,
também imaginava imensas cenas dignas de um filme: pardais a falarem comigo,
Deus a olhar comovido para mim, um ladrão debaixo da minha cama, o conde Drácula
a entrar pela janela para me sugar o sangue, as nuvens a perseguirem-me pelo
céu transformadas em lobos, as meninas da minha aldeia a levantarem a saia e a
dizerem que o pipi delas era meu para toda a vida… Mas sempre que eu contei
isto a alguém não me deram importância. Felizes foram as crianças americanas e
os pastorinhos de Fátima!
O
seu guia espiritual, por aquilo que vejo no facebook, deve ser o Alan Kardec,
que na verdade não tinha este nome mas se chamava Cavalo de Pedra, tudo junto e
em grego. Um francês de Lyon que não tem adeptos no seu país mas é idolatrado
por milhões no Brasil. Sempre pensei que existia um conluio mascarado entre o
Vaticano e o Kardec e alguns indícios começam a ser muito fortes. Dou aqui um
exemplo: o atual papa chama-se Francisco e o líder kardecista mais importante
do mundo, também, foi o Chico Xavier, um homem de Minas Gerais que tomava o
pequeno-almoço a tratar de negócios com centenas de espíritos.
Devo
dizer, no entanto, que ainda não entendi quem é o IKEA. Pelo que li no seu
facebook, que o senhor não assume porque quer continuar a enganar as pessoas, é
o Infinito Krill Espiritual do Amor. Uma espécie de analogia com o alimento
básico dos mares e das grandes criaturas. O krill
espiritual prolifera no mundo, seduz os homens de boa vontade e aperfeiçoa-lhes
a alma para eles se integrarem no absoluto. No entanto, na mensagem ameaçadora que
me dirigiu fala dele como um chefe alien, que comanda os ellogs para fazerem
javardice com os humanos e procriarem. Isso já não é propriamente kardecista. Tenha
cuidado! Por esse andar vai ter de se esconder do Papa e do Chico Xavier
(do espírito, claro, porque o desgraçado faleceu).
Sabe,
ando aqui a pensar que talvez o senhor não seja padre nem kardecista, talvez
seja apenas maluco e assassino. Por isso baralha os nomes! Falou comigo a dizer
que tenho premonições, mas devia estar a pensar noutra pessoa, talvez num dos
seus apaniguados, como o Davoud, o iraniano que afinal é português nascido em
França. Eu não sou o Davoud, sou o Francisco, o amigo do Silveira, e espero que
o Bispo descubra tudo aquilo que você anda a fazer e o excomungue, enviando-o para
os quintos do inferno.
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