Que raio de confusão,
Silveira! Não posso acreditar que tenham mesmo assassinado a idosa. Estou a
escrever-te isto no facebook porque vim de férias uns dias, a Serpa. Se calhar
esta até é a melhor forma de comunicarmos, pois o que me confessaste é indesculpável
e não me apetece nada voltar a ver-te. Brinco, até porque não acredito totalmente
nessa história, se correspondesse à realidade tu não ma ias dar a conhecer,
guardava-la bem guardada. Vai-te lixar, cabeça de sachola, pedregulho musgoso,
pivete encardido! Porém, a tua lengalenga espevitou a minha curiosidade acerca
do Padre. Que diabo de sacerdote é que resfolega ali? Fui pesquisar páginas no
facebook e encontrei a dele. Tem o nome de Adolfo Tortulho. Adolfo Tortulho?
Não dá para acreditar! O certo é que eu conheci uma família com este apelido,
em Cascais, na minha adolescência. Deves estar a pensar “Mas este carapau de
corrida, esta tíbia sem perónio, acha que conhece toda a gente?” Podes crer que
sim. O apelido chegou a esta família pela via de uma alcunha baseada numa
caraterística física: o nariz. O avô esteve na origem, porque tinha a penca com
o formato de um enorme cogumelo, daqueles comestíveis, muito maior do que a do saudoso
cascalense Mário Clarel, que ajudava as pessoas a preencherem formulários e ostentava
uma bicanca redonda da família das cactáceas. O sacana do funcionário do registo,
que conhecia o avô Tortulho, recebeu uma gorjeta dos amigos e colocou-lhe a
alcunha no nome do filho mais velho, sem ele dar por isso. Todos os descendentes
acabaram por se resignar e, com o passar do tempo e o avolumar da ignorância
citadina sobre os fungos, começaram até a encontrar no termo um certo laivo de
aristocracia e de estrangeirice.
Os tortulhos viviam numa
rua próxima do Museu do Mar, ao lado do café “Os Três Porquinhos”, onde se
juntava uma fauna humana numerosa e barulhenta para comer bifes de cebolada e
beber vinho caseiro que jorrava de um pipo. A enorme frigideira adensava o
molho durante um mês, mas ele tornava-se tão pastoso que tinha de ser mudado.
Nos dias em que a frigideira era lavada, os clientes berravam de desprazer e
vituperavam a cozinheira por causa da falta de tempero da carne.
— O que é que querem? —
Respondia ela, encolhendo os ombros. — Já sabem que tenho de lavar isto todos
meses.
Sempre julguei que os três
porquinhos eram os donos do café: o pai, a mãe e o filho, um adolescente muito
esquelético, que às vezes introduzia rapidamente o dedo indicador da mão esquerda
na frigideira e o chupava para dizer aos clientes que o molho estava perfeito.
Tenho quase a certeza de que
o padre é o neto do avô Tortulho. Lembro-me de o ver e tinha um ar assaz esquisito.
Era meio esgrouviado e às vezes ficava a olhar muito tempo para as pessoas,
como se estivesse a imaginá-las em situações extravagantes. É possível que o
ácido sulfúrico derivado das toneladas de cebola que todos os anos acompanhavam
a fritura dos bifes do café “Os Três
Porquinhos” tenha corroído o juízo da vizinhança, especialmente o moral, e
o rapaz se tenha tornado um trafulha e um assassino. Sei que andou num
seminário e isso é demasiada coincidência. A página do Facebook está cheia de
fulanos musculados e peludos, com tatuagens e argolas. Também reparei que se
corresponde com muitas amigas com nomes tipo skype. Embora no seu perfil esteja
uma frase a dizer “Amigo de todos os que são escorraçados, pois Deus é paz e
guarida”, descobri que tem um link que direciona para um site sobre armas, em
inglês.
Vai lá lá vai, com a
companhia, amigo Silveira! Não queiras dar um cheirinho no travão! Mas não
tenhas problemas, não sou delator e até fico curioso com a tua história. Conta
lá, esmiúça tudo o que sabes.
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