Espera
lá, Silveira, agora fez-se luz nesta cabeça de abóbora de cabelo desgrenhado
que costumo carregar sobre o pescoço. Porque é que não pensei nisto há mais
tempo?! A tua história não é temporalmente aceitável. Tu és cota, mas não tanto.
És até mais novo do que eu. Por isso não podias ter conhecido o pai do Davoud
antes de este nascer e já seres repórter nesse tempo. Que diabo, em 1980,
quando estive em Paris, terias vinte anos. Foi há trinta e cinco. O Davoud já
tem mais de quarenta. Ou estás a brincar comigo ou a tentar desviar-me a
atenção. Vá lá, não faças de mim parvo! De qualquer modo, existe de facto uma relação com outros iranianos.
Esse
verão foi um marco na minha existência. Por isso recordo todos os pormenores ligados
a esse período. Antes da viagem, por exemplo. Arranjei uma namorada a quem
disse que me chamava Segismundo. Ela acreditou. Fiz uma aposta com o Cortes em
como conseguia seduzi-la. Saímos várias noites, incluindo aquela em que dizem
ter aparecido um ovni por cima da baía. Posso garantir que foi verdade, pois
estava com essa namorada, a Angélica, e vimo-lo perfeitamente. Ela saiu de
Cascais nesse verão, para a Figueira, salvo erro, e quando regressei de França
já não a vi. Mas há cerca de um mês, estava eu a ler o Cascais Magazine, numa
edição dedicada a essa aparição do objeto voador não identificado, em 1980,
quando deparei com o testemunho escrito dessa minha acompanhante. Fiquei
extasiado pelo facto de saber que ainda faço parte das suas memórias, embora
não conheça mais nada dela. Tirei duas cópias ao texto. Toma, lê, depois
explico-te a relação com outros iranianos.
"Lembro-me bem da noite do OVNI.
A evocação dos estranhos eventos que
ocorreram nessa data, tão insólitos como faiscantes, entranhou-se
avassaladoramente no meu referente de existência e acometeu, ao longo destes
anos, os lampejos mais fortes da minha consciência.
Era novinha, quase adolescente. Tinha
vinte anos de fulgor e ingenuidade. Estava ainda deliciada com as pequenas
descobertas e esperanças típicas das raparigas que não conseguem estancar o
rubor, diante dos piropos dos rapazes mais atrevidos.
Era muito púdica. Ainda hoje o sou,
mas nessa idade atingia os píncaros do exagero. A moral católica, que me
entrara no corpo e na mente durante a inteireza da infância, enquanto me
ajoelhava, sem pausa, nos bancos da Igreja Matriz, fizera de mim um projeto de
mulher repleto do sentido do meu nome: Angélica.
Depois de estar algum tempo na
esplanada do Hotel Baía, com o meu namorado recente, o Segismundo, fui jantar
com ele ao restaurante D. Pedro I, ali nas escadinhas que subiam na lateral do
antigo quartel dos bombeiros. Passávamos a estátua oxidada do rei justiceiro e
lá estava ele, o comedouro dos jovens e dos menos abonados. Pedimos costeletas
grelhadas, de novilho, com batata frita. Não havia sítio nenhum com tanta
qualidade por tão baixo preço. Embora não tivéssemos problemas em pagar mais
por uma refeição, ir ali dava-nos uma certa aura de juventude despretensiosa.
Depois do jantar fomos até ao
marégrafo. O mar estava plácido, o ar tépido, as estrelas desejosas de nos
acompanhar, os ânimos quentes… As proteínas e os hidratos do repasto
atafulhavam tanto os espaços gástricos que os corações pareciam ser obrigados a
deslocar-se em direção aos lábios, e sabem o que acontece aos corações quando estão
próximos das bocas: as mucosas tornam-se mais sanguíneas, dilatadas, erógenas,
brota nelas um desejo irrefreável de lábios e de pele.
Segismundo avançou na exploração do
meu corpo, como um aventureiro intrépido, puxando-me para ele com afoiteza
experimentada. Eu alternava os gemidos prazerosos com negações sensatas de
menina de bem. Estávamos mesmo na ponta do passeio, numa zona pouco iluminada,
encostados à muralha da cidadela.
— Vem ali o quebra ossos! — Exclamou
de repente o Segismundo.
E era verdade. Tratava-se de um
argentino, dono do bar La Pulperia, que tinha enorme deleite em massacrar o
mais possível as mãos daqueles a quem cumprimentava, apertando-as até às
lágrimas. Diziam que não trocava este prazer por nenhum outro, incluindo o do
sexo.
Com a desculpa de que não queria ter
as mãos esmifradas pelo compulsivo sul-americano, cujo bar fechava nesse dia, o
meu amor levou-me a descer as escadas do marégrafo e a aceder à passagem
estreita, sobre as rochas que faziam a separação entre a fortaleza e a água
salgada. Aí, sem vivalma que se fizesse notar, encostou-me à muralha e
recomeçou as suas atividades exploratórias do meu corpo. Beijou-me, sugou-me,
colou-se, puxou-me, enlaçou-me, enroscou-se…
Foi então que surgiu o OVNI. Era
imenso e redondo e encheu o meu olhar. O tom avermelhado e luzidio da sua parte
central produziu em mim um impacto tão forte que soltei um grito, entre o medo
e o espanto. Esteve ali sob as estrelas, não sei por quanto tempo. Pareceu-me
uma eternidade. E embora digam que se afastou em direção ao mar eu fiquei com a
ideia de que ele regressou diversas vezes, antes de se afastar definitivamente.
Nunca, por mais anos que viva,
esquecerei aquele objeto misterioso, que assistiu à minha primeira noite de
amor e me deixou a cabeça povoada de estrelas e de viagens espaciais.
Este é, de facto, o meu Cascais Menino.”
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