Pois é Silveira, aquele teu amigo, o Davoud, tenho a certeza de que o
conheci em Paris, quando tinha vinte anos, foi no verão antes de entrar para a Faculdade,
ele não se lembra de mim, nem é suposto lembrar-se, pois nessa altura não tinha
mais de 3 anos, mas eu reconheço-o por causa de um sinal que tem no pescoço,
hás de reparar, parece que às vezes quer espreitar por baixo dos colarinhos da
camisa como se, ao mesmo tempo, sentisse uma enorme curiosidade e quisesse
passar despercebido.
Lembro-me de o dito sinal ser notícia na TF1. O miúdo tinha uma guitarra
elétrica no pescoço, com cerca de três centímetros, bem delineada, parecia
milagre, porque o pai, o Pompílio, era guitarrista aos fins de semana, tocava
nos bailes dos emigrantes portugueses, cheguei a ir a um deles, cheirava a
sardinha e a bacalhau assado e muitas bochechas tinham a cor do vinho e tudo
dançava ao som de cantigas brejeiras, viras minhotos e risadas de acordeão.
Em junho eu, o Cortes, o Carvalho, o primo do Carvalho e o Lagos,
animados pela abertura à Europa que a revolução de 74 tinha trazido aos jovens,
libertando-os também da saloiada salazarista, a que infelizmente estamos a
voltar, pelo menos na desconfiança e na burocracia, em junho, dizia eu, decidimos
meter-nos no comboio e ir para a Suíça, passear e ganhar algum dinheiro a
apanhar fruta, ou talvez tomate, já não me lembro, do que me lembro é que estávamos
com uns tomates do caraças, com um herói dentro de cada uma das bolinhas a
espevitar-nos as hormonas e a excitar-nos com a perspetiva da viagem.
Na noite anterior reunimo-nos no Piper´s,
um bar junto ao mercado, e a coisa começou logo a ganhar dimensões épicas, cada
um de nós pediu uma imperial, exceto o Carvalho, que solicitou educadamente,
como era seu hábito, um sumo de laranja, que naquele tempo era feito com uns
pós estranhos, a que chamavam essência, ora o essencial da questão é que mal o
desgraçado levou a bebida à boca começou a inchar, a inchar, o cimo do pescoço,
os beiços e as bochechas pareciam querer arrebanhar todo o sangue e restantes
líquidos do corpo, “porra, temos que
correr para o hospital senão este gajo morre e lá se vai a viagem!”, saímos
sem pagar, os empregados aperceberam-se da situação mas disseram para irmos à
vontade, que a despesa era por conta da casa, subimos a Avenida 25 de Abril, a
caminho do hospital, com o Carvalho transformado numa lástima empolada, mas o
primo dele tinha uma máquina fotográfica, que havia comprado de propósito para
a viagem, e queria começar a usá-la o mais cedo possível, vá-se lá saber porquê
achou que aquela peripécia já fazia parte da grande aventura e toca a
mandar-nos parar para tirar uma fotografia à carantonha do infeliz, o Carvalho
nunca mais lhe perdoou esse capricho artístico que, na opinião dele, constituiu
um atentado aos valores da solidariedade e da família, embirraram um com o
outro durante toda a viagem e ainda hoje não se falam.
No dia seguinte partimos da gare de Santa Apolónia, no Sud Expresso, cada
um de nós levava aquilo que considerava essencial, eu tinha alguns pares de
cuecas, um licor que surripiara não sei donde e que tinha a marca “Campino”, e ainda
uma gramática de latim, porque tinha feito exame e não sabia se precisava de o
repetir, o Carvalho carregava um saco cheio de conservas e chouriços, o primo,
o Dinis, levava a máquina fotográfica e muitas pernas de frango assadas e picantes,
porque o pai era dono de uma churrascaria, o Lagos, que me lembre, apenas viajava
com uma grande curiosidade, uma enorme magreza e o sonho de ser um ator de
relevo, devo dizer que conseguiu isso, entrou para o Conservatório e fez
carreira, finalmente o Cortes arrastava com esforço um enorme malão castanho,
cheio de roupas, porque pretendia seguir da Suíça para Inglaterra, ao encontro
da sua namorada, que estava lá a trabalhar como enfermeira.
Fomos a caminho de Martigny, no
cantão francês, passando por Lyon, Genève
e Lausanne, embora estivéssemos a entrar
no verão havia um frio do caraças e a apanha da fruta estava muito atrasada,
apenas iria começar dali a três semanas, por isso decidimos regressar a Genève, porque não tínhamos dinheiro
para aguentar a carestia de vida suíça durante tanto tempo.
Foi na bonita cidade de Lausanne, a caminho de Genève, que
o meu licor “campino” cumpriu a sua função. Depois de jogarmos xadrez nos
tabuleiros desenhados nos pavimentos, passámos a noite na gare, tentando
resguardar-nos do frio intenso. A sala estava cheia de clientes como nós,
também eles enregelados. “Fermez la porte” era a única frase que se ouvia
quando alguém entrava. Todos cumpriram aquela mistura monocórdica de ordem e
solicitação até que entrou uma mulher desgrenhada, ainda relativamente jovem,
magra e loira, que abriu as portas de par em par e se recusou a fechá-las,
gritando que em Espanha uma família inteira tinha morrido com monóxido de
carbono numa sala. Ficou à entrada, com a corrente glacial a passar por ela, a
atropelar os palavrões que lhe eram atirados de todos os lugares e a congelar as
carnes e os ossos. Ao fim de cinco minutos de lengalenga, que pareceram uma
eternidade, foi-se embora e logo meia dúzia de corpos enregelados se levantaram
para vedar o acesso ao ar gélido da noite. Acomodámo-nos todos, aliviados, mas
o nosso otimismo durou muito pouco, eis que a mulher voltou a irromper na sala,
gritando “vous êtes fous, oh oui, en Espagne une famille entière…”. A cena
repetiu-se várias vezes, de tal modo que os palavrões em francês já não
conseguiam elevar-se no ar gelado, caíam mal eram arremessados da boca, e foi
então que eu abri a garrafa de licor e esta passou por todas as bocas da sala e
tenho a certeza de que nunca aquela bebida açucarada, alcoólica e enjoativa foi
tão unanimemente apreciada.
Bom Silveira, hoje não tenho tempo para te contar o resto da viagem e como
encontrei os pais do Davoud, o Pompílio e a Iracema. A minha mulher está à
espera. Se estiveres aqui amanhã, a esta hora, ficarás a saber tudo.
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