Posso dizer que o
Pompílio e a Iracema, emigrantes de Aveiro, foram a nossa salvação. Já me
estava a ver sem dinheiro, em Paris, e sem saber o que fazer à vida. Eles
acolheram-nos em casa, trataram-nos como se fôssemos família chegada, arranjaram-nos,
inclusivamente, um trabalho durante um mês, levaram-nos a passear por todo o
norte de França… Não tenho palavras para exprimir o meu enorme reconhecimento.
Ele era, como já disse, um homenzarrão, teria trinta anos, meio arruivado, a
barba com cerca de dez centímetros, com uma figura simultaneamente jovial e
imponente que incutia nos outros um certo temor de o ver colérico. Ela era
pequena, viva como a sardinha, segundo se dizia na altura, bonita, de cara
redondinha, com uma inegável propensão para a sociabilidade mas, ao mesmo
tempo, com uma necessidade imperiosa de embirrar com o marido. Todos os dias
lhe triturava diversas vezes o juízo, por minudências desprezíveis,
assanhando-se contra ele como uma gata, enfrentando-lhe a irritação até que,
repentinamente, ele a agarrava, a punha ao colo e dizia “É por isso que não posso
estar sem ela, é a única pessoa que me faz sentir pequenino!”, levava-a
pendurada ao pescoço para o quarto e faziam amor. Ninguém consegue imaginar
quantas vezes o faziam.
O casal de Aveiro tinha
dois filhos, uma menina ruiva, de olhos azuis como os do pai, que se chamava
Mariana e teria cerca de dois anos e um rapaz com três anos, de cabelo castanho
e ar introvertido, que olhava com curiosidade para as coisas mas também de
forma enigmática, nunca percebíamos o que se estava a passar naquele cérebro.
David, assim se chamava ele, tinha no pescoço um sinal em forma de guitarra que
era o orgulho do pai, este mostrava-o a toda a gente e afirmava que fora a sua
enorme veia artística de tocador do referido instrumento que originara aquela
marca no filho. A fama do miúdo alastrou de tal modo que certo dia apareceu lá
uma equipa da televisão para fazer uma reportagem. O título foi qualquer coisa
parecida com “Filho nasce com a figura da guitarra do pai no pescoço”
Durante o mês de agosto o
Pompílio arranjou-me um emprego como substituto de uma concierge que estava de férias. As minhas tarefas consistiam apenas
em manter as escadas e os corredores do prédio em questão razoavelmente limpos,
sem papéis, beatas, marcas de patas de cão, nódoas e ajuntamentos de pó. No
início levei a minha responsabilidade ao extremo, limpando tudo exaustivamente
e cumprindo o horário. Depois, um argelino dono de um minimercado que existia no
rés-do-chão do prédio, começou a rir-se do meu zelo e ensinou-me a dormir
deitado em três cadeiras na arrecadação das limpezas. Comecei também,
pressionado pelos meus anfitriões, a largar o serviço às três da tarde, mas embora
eles quisessem que o fizesse à hora do almoço nunca fui capaz de tal mandronguice.
Aos fins de semana,
durante o mês de agosto, íamos para a casa do cônsul americano em Versailles,
porque este estava de férias nos EUA e era um casal amigo do Pompílio e da
Iracema que tratava da propriedade, vivendo mesmo numa das várias casas que
esta possuía. Comíamos tanto e tantas coisas que já não tínhamos barrigas mas
sim bandulhos e o sangue parecia ficar muito mais fluído com a ingestão de Ricard
e cerveja, de tal forma que à noite, no salão da casa principal, o meu
cérebro pairava muito acima da cabeça enquanto eu rodopiava nos braços da
Iracema, ao som de músicas populares tocadas pela guitarra do Pompílio e pela
concertina do amigo, também ele de Aveiro.
Ai Silveira, é por isso que
eu nunca dirigi a palavra ao Davoud. Cumprimentei-o várias vezes, mas é-me
doloroso pensar na tragédia que aconteceu aos pais, nesse mesmo verão, no final
de setembro, quando regressavam de Portugal e foram abalroados, numa estrada
espanhola, por um camião. Apenas escapou o miúdo, o David, que foi depois
adotado não sei por quem e que agora diz chamar-se Davoud, que nunca teve
nenhum irmão nem pais estrangeiros, a não ser que fossem os adotivos, isso já
eu não sei.
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