quinta-feira, 6 de agosto de 2015

7 - A MINHA VIDA EM PARIS ANTES DE CONHECER OS PAIS DO DAVOUD



Bom, amigo Silveira, continuando a nossa conversa de ontem, sobre o Davoud, volto a dizer que tenho a certeza de que era ele o miúdo que conheci em Paris. Lembro-me bem desse período, talvez o mais interessante da minha vida, e de quase tudo o que se relaciona com essa viagem.

Depois de regressarmos a Genebra, eu e o Cortes separámo-nos dos outros e fomos em direção a Paris. Ele continuava a arrastar a mala enorme, que parecia feita à medida do seu cérebro, pois toda a gente sabia que ele possuía um ampliador cabeça, os amigos tinham até elaborado tabelas para calcular rapidamente os descontos a fazer em relação às suas afirmações: às medidas dos animais, por exemplo, havia que aplicar uma taxa redutora de 75%, no caso das doenças, a redução chegava a atingir os 99%.

Como tínhamos de andar à boleia, a mala era um desmotivador de boas ações, por mais que os condutores tivessem intenção de parar e chegassem mesmo a imobilizar os veículos, a verdade é que quando as viaturas se apercebiam do seu tamanho descomunal desobedeciam às ordens dos condutores e aceleravam por vontade própria. Pelo menos era o que eu gostava de dizer, para irritar o meu companheiro de aventura.

Estávamos nós há 12 horas de braço esticado numa terra chamada chalon-sur-Saône, nunca me esquecerei do nome, quando fomos assolados por uma daquelas decisões que parecem nascer da frustração mas que, posteriormente, mostram ser fruto de uma ordenação mais alta, digo até divina: abandonámos a tarefa, entrámos num café, pedimos umas sandes e uma garrafa de vinho e regalámos as nossas papilas do bom gosto. Quando saímos já anoitecia, mas aquecidos pelo líquido de Baco e mais desleixados com as probabilidades, esticámos novamente os braços na berma da estrada principal. Ainda os dedos apontadores não estavam completamente direitos e já um citröen 2CV refreava o seu instinto galopante e estacava 5 metros à nossa direita. Nem queríamos acreditar. Lá dentro, um marroquino chamado Hassan, esticava os cantos da boca tentando chegar com eles às orelhas. “Ou allez vous?”, “Paris, Paris”, “Entrez, entrez”, “Et la valise?”, “Oh! Merde, que portez-vous en cette valise?”, “Le Portugal”, “Mais, c’est grand, le Portugal!”...

Conseguimos encafuar o malão e o Cortes nos bancos traseiros do automóvel e lá foi este, teimoso e lento, galgando quilómetros até à capital francesa. Hassan deixou-nos junto à estação do Metro Montparnasse – Bienvenüe, porque o nosso destino era ali perto, numa rua chamada Raymond Losserand, em honra do notável dirigente da resistência francesa executado em 1942. Eram quatro da manhã. O Cortes não quis incomodar as nossas amigas portuguesas anfitriãs àquela hora e por isso ficámos junto à gare, aquecendo-nos com o bafo dos respiradores do metro. Às seis da manhã olhámos em volta e concluímos, admirados, que Paris estava cheia de bêbados e sem-abrigo a tentarem aquecer-se como nós. É assim em todo o lado, amigo Silveira, por mais vaidosas que sejam as civilizações e as cidades, a miséria humana estende-se, incontornável, como um grande capacho onde as consciências podem limpar os pés e entrar calmamente nas casas limpinhas da civilidade. Enquanto não se tornar insuportável, a miséria não perturba, não contamina, limpa e fortalece a má consciência social. Quando deveríamos dizer “a sociedade não é boa porque muitos são tratados como coisas” pensamos “a sociedade é boa para muitos e felizmente eu sou um deles”. E os próprios despojados da condição humana, contaminados por esta deterioração do ponto de vista, acabam por afirmar “a sociedade não é boa para mim porque tive azar ou não a mereço” e depois invertem o pensamento e concluem “eu não sou bom para a sociedade”.

As nossas duas amigas tinham cada qual o seu apartamento no n.º 2 do squat da rua Raymond Losserand. Um squat é um prédio votado ao abandono que é ocupado por pessoas que não são donas nem pagam renda nem têm autorização para o fazer. No caso daquele, não era apenas um prédio, era todo um quarteirão. Tinha sido ocupado por gente com ideais de vanguarda mas o tempo substituíra muita dessa gente por imigrantes das mais diversas nacionalidades e por toxicodependentes. Chegámos lá às sete da manhã e fomos recebidos pela Fátima, uma amiga portuguesa com ar beduíno que vivia com um argelino chamado Mustafa, o qual parecia nunca lavar a cabeça e passava o tempo todo deitado a ler um livro qualquer da faculdade e a enrolar com o dedo indicador da mão direita um tufo de cabelo encaracolado, que dava a sensação de escorrer óleo.

Fátima levou-nos ao 3.º andar e alojou-nos na casa da outra amiga, chamada Madalena, que tinha ido passar uns tempos à Turquia com um namorado dessa nacionalidade. Vivemos ali 3 semanas cheias de peripécias e estranhezas, amigo Silveira, e apenas a boa vontade dos pais do Davoud, pois tenho a certeza de que eram os pais dele, nos livrou daquela situação bizarra.

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