quarta-feira, 24 de junho de 2015

4. TOCARAM NOVAMENTE. ISTO JÁ É VANDALISMO!

Quem diabo está a tocar à campainha?! São dez horas da manhã, ainda estou no reino de Hypnos e Morfeu deu-me cabo do sono, levando-me por pesadelos intermináveis. Todas as noites é a mesma coisa, o cérebro entra em modo masoquista, espatifando a tranquilidade noturna com cenas pavorosas, dignas de um filme de terror. Assumo sempre dois papéis: o de realizador e o de personagem central. Tudo segue uma lógica narrativa impecável: a sequência das peripécias tem uma coerência perfeita, pelo menos é o que me parece quando acordo bruscamente e me lembro da totalidade da ação.

Tocaram novamente. Isto já é vandalismo! Nem ao sábado podemos dormir!

Hoje sonhei com a minha morte. Vi-me deitado numa urna cor de laranja, com o corpo completamente retalhado, deixando pender tiras de músculos fatiados e sanguinolentos. O Silveira e o Marcial estavam a meu lado, à esquerda e à direita, respetivamente, em pé, debruçados sobre mim.

“Desta vez é que foi, conseguimos!” Disse o meu primo. E uivaram os dois, como se fossem lobos a chamar a matilha para a carnificina. Começaram depois a despejar sobre mim azeite e vinagre, para me temperarem. O Silveira cortou alhos com uma faca japonesa e espalhou-os sobre as feridas do meu corpo. Sofri dores horríveis, embora estivesse morto.

Mais dois toques na campainha! Porra! Estou farto disto!

O Stop, que embora seja surdo-mudo fala sempre nos meus sonhos, para além de fazer caretas, ergueu-se repentinamente do interior do meu peito, como um alien, e gritou feito doido “Morre, morre peçonhento, estrume de porco, paga pelo que me fizeste!” O Sr. Padre também surgiu, não percebi donde. Estava com a cabeça encostada ao teto e aspergia-me com água benta, mas esta era ácida e ao entrar em contacto comigo esburacava-me todo. E ele berrava, retesando o pescoço “Foge ao pecado, foge ao pecado, assassino, seara do diabo!”

Não aguento mais! Tocaram de novo. Tenho de ir ver quem é. Que raio querem a esta hora? Estou a ficar em brasa!
Já vou, já vou! Quem é?
“É o Silveira.”
O Silveira? Que queres? Porquê a pressa?
“Abre, caraças! Tenho de te contar uma coisa.”

Espero que seja muito importante, ou então vais experimentar a raiva de um iraniano!

“Deixa-te de tretas, só o Padre é que acredita que és iraniano. Sei muito bem que os teus pais se chamavam Pompílio e Iracema, eram de Aveiro e estiveram emigrados em França, na região de Paris.”

Filho da mãe mentiroso! Abro a porta. O Silveira está a olhar para mim com a cara vermelha por causa da excitação. Pergunto-lhe o porquê de todo aquele alarido. Faz uma pausa. Explico-lhe que estou sem paciência para aturar as suas invenções. Cada vez está mais alienado, acho que caminha aceleradamente para o mundo dos psicóticos.
 Finalmente resolve contar-me o que se passa.

“Tinha de te dizer isto, Davoud, corre por aí o boato de que mataste o teu irmão!”

segunda-feira, 22 de junho de 2015

3. A HISTÓRIA COMPLICA-SE: BOM SINAL, BOM SINAL!


Puxo de um cigarro. Não para o fumar, que não fumo há muitos anos, desde que o Monsenhor exclamou, horrorizado, «Um padre não fuma!»», um dia em que me viu soprando aros de fumo para o ar. (O que eu tentava era formar cruzes, mas não pude aperfeiçoar o método). Já não fumo, portanto. Mas, a sós, puxo de vez em quando de um cigarro, mantenho-o entre o indicador e o médio, e isso ajuda a que me concentre e a que ponha as minhas ideias em ordem.

Estou com dois textos diante dos olhos. Um, que leram primeiro, foi o daquela espécie de duelo entre o Davoud e o Silveira, e que o Silveira transcreveu como vos dei a ler. Estranho momento. O Silveira e o Davoud apontando-se pistolas um ao outro, incapazes de ultrapassar a situação - como se chegou àquilo? perguntei-me ao reler a descrição.

Tentando recordar a sucessão de peripécias que levou ao «impasse armado», como se lhe referia o Silveira, fui à procura de outras cartas, anotações, fotografias, e dei de caras com aquela missiva do Davoud. O Davoud escrevia bem! Lia muito, e era um fanático pela literatura portuguesa (inclusivamente Camilo), apesar de se tratar de um imigrante iraniano que aprendeu o português à sua própria custa.

Casou cá, em Portugal, com a Irina, que era por sua vez uma emigrante ucraniana.
 Sei que Davoud me escondia que era casado e tivera filhos, para assim justificar a sua tremenda fome sexual; nem na confissão - que me relembra na carta - teve coragem para me revelar que o seu pecado de insaciedade sexual era, ainda por cima, um pecado de infidelidade.

Marcial não era seu primo. Foram criados juntos, de facto, por uma senhora nobre que os acolheu, mais a um irmão de Davoud, surdo-mudo. Consta que a senhora foi assassinada por Davoud, seu irmão e Marcial: teriam eles entre catorze (o mais novo, irmão de Davoud) e dezoito anos (Davoud e Marcial). Também há quem diga que a senhora foi morta por um herdeiro. Ao certo, ninguém sabe.

Mas alguém sabe alguma coisa nesta vida?
Marcial desapareceu. Quando reapareceu, era um homem que entretanto casara, tivera filhos, mas perdera a mulher e os filhos.
Desígnios de Deus? Que sabemos nós disso, também?
E se eu alumiasse este cigarro e desse duas fumaças para me acalmar?

segunda-feira, 15 de junho de 2015

2. QUE O SR. PADRE NOS AJUDE!




Chamo-me Davoud, Sr. Padre. Lembra-se de mim? Foi o senhor que, com enorme bondade, me orientou quando eu andei tresmalhado do seu rebanho, completamente desorientado pelas inúmeras tentações da carne, que me saíam ao caminho a qualquer hora do dia e da noite, me abriam desmesuradamente as pupilas e me introduziam no cérebro uma vontade irascível de copular. Sempre fui extraordinariamente dotado para as palavras, podia escrever um livro a partir da minha fala, porque desde a infância que as frases me saem com a sintaxe e o vocabulário da escrita. Isso agrada às mulheres, perdão, Sr. Padre, às senhoras, assim é que devo falar, porque merecem o nosso respeito, como muito bem me ensinou.

Quando o procurei, naquele dia terrível em que senti a morte a lamber-me as tripas e a fazer de mim um calafrio, olhou-me compadecido, pousou-me a mão no ombro, sentou-me no banco de madeira da sacristia e ouviu-me durante horas. As palavras pareciam escoar todas as minhas frustrações para os seus ouvidos, libertando-me dos padecimentos, há muito tempo acumulados pela compulsão libidinosa que me assolara ao longo de meses. Durante toda a minha vida, tinha sido um fulano misógino, incapaz de criar intimidade significativa com as mulheres. Interessava-me apenas pela sedução superficial. E tinha muito sucesso nesse domínio, pois elas adoravam as pequenas atenções que lhes proporcionava, falavam do meu olhar meigo e enigmático, queriam perder os dias na minha proximidade.

Uma noite transformei-me. Tive aquele sonho, penso que se lembra de lho contar, e na manhã seguinte acordei como se me crescesse um vulcão nos testículos, como se o diabo abrasado se tivesse introduzido abusivamente no meu corpo e me soprasse furiosamente nas glândulas sexuais. O falo inchou e assim permaneceu, altaneiro, sôfrego, latejando pecaminoso perante qualquer mulher. Nenhuma amiga escapou ao meu desejo. Atraiçoei tudo e todos, arrisquei a vida, perdi a dignidade, fui corroído pela culpa. A pujança fálica era inesgotável, até doer, até aos espasmos.

Mas hoje não é de mim que venho aqui falar, Sr. Padre, é do meu primo, o Marcial, que bem conhece. Estou muito preocupado. Tudo começou há cerca de um mês. Estava com ele na sala, a ver um jogo de futebol, e reparei que tinha um ar pasmado, a olhar através da parede, para o infinito. Nunca mais foi o mesmo. Fala sozinho, mostrando sinais de demência, diz coisas ininteligíveis… Às vezes tenho a sensação de que pensa que existe mais gente em casa. Gostava muito que o Sr. Padre o chamasse aqui para conversar, fizesse com que ele se abrisse, como aconteceu comigo. É o meu único familiar e fomos criados juntos. Quando lhe assaltaram a casa e lhe mataram a mulher, os dois filhos e a sogra, ficou perdido durante anos, à deriva pelo oceano das dores. Parecia ter recuperado, desde que veio para minha casa. Mas estou muito apreensivo com esta nova faceta dele, Sr. Padre. Suplico-lhe que nos ajude.