segunda-feira, 22 de maio de 2017

32. O CÊ É O DONO DISTO TUDO

O Cê é o dono disto tudo

(monólogo do JC com o chefe Abrantes à porta do café Safari)


Olha Abrantes, sei que andas desconfiado do Padre e tens razões para isso, essa gente não é de confiança, dizem que são pastores mas, cá para mim, são mas é lobos, e dos maus, todos me chamam Jacinto do Cê porque sabem que para mim o dono disto tudo é o Cê, desculpa estar com este rameuméu mas é a mais pura das verdades, o pessoal sabe disso muito bem, basta ouvir as conversas do dia-a-dia para o perceber, tudo pertence ao Cê, os animais, as plantas, os filhos, as mulheres, os amigos, a vida, o mundo, o próprio Cê, porra!, toda a gente diz que pertence a ele próprio, é por isso que eu fico raivoso quando vejo baterem palmas aos padres, ou a qualquer outro que não seja o Cê, quando andei na tropa também era a mesma trampa, chegava o coronel ou o simples tenente e pronto, toda a gente estava em sentido, batendo palmas a qualquer bazófia que lhes saía da boca, só o Chaimite é que não ligava nenhuma, era magro como um esqueleto e ruço e mijava na cama, tinha os dentes da cor da caca das crianças e estava sempre a tirar macacos do nariz, a enrolá-los e a ameaçar limpá-los à farda do mais próximo, ria, mostrando aquelas tacholas enormes, e quando passava o coronel ele não se punha em sentido, metia os ossos da mão no bolso roto das calças e acariciava o fueiro, "es­tou a batê-las" dizia, enquanto os outros lam­biam as botas do coronel, por fim acharam que era maluco e mandaram-no para casa, à saída do quartel ele voltou-se e riu, num riso asmático, mostrando as dentuças amarelentas, tirou um macaco do nariz, amassou-o bem e colou-o, com todo o cuidado, nos ferros do portão, e depois lá foi, rindo e massajando o fueiro, feliz da vida por não bater palmas, no oeste americano ninguém batia pal­mas ao Jesse James e o Jesse James era o maior, sacava das pisto­las com a rapidez de um foguete e bum, bum, era só matar, eles caíam no pó como espantalhos, uma vez chegou a uma cidade e estavam oi­to à espera dele, desceu do cavalo, coçou-lhe o focinho, prendeu­-lhe as rédeas, os outros estavam cagados de medo, e então ele voltou-se como um diabo, antes de sacar as pistolas já as tinha nas mãos, deu um salto enorme, cuspindo chumbo, e eles começaram a cair com a admiração estampada na cara e a vida a esgotar-se por um buraco entre os olhos, ficaram estendidos no pó da rua, e o Jesse James soprou o fumo das pistolas, meteu-as nos col­dres, passou por entre a multidão batendo com os tacões, entrou no salão, que era o Safari lá do sítio, e pediu um uísque duplo, bebeu de um trago, saiu, olhou tudo e todos com desprezo, montou o cavalo e afastou-se a trote, e só então o povo arranjou coragem para bater palmas, bateu durante a tarde inteira, até o cangalheiro esqueceu o seu trabalho, até os mortos se levantaram para mandar com as mãos uma na outra, o Napoleão, que foi talvez o gajo mais esperto que já existiu, a seguir ao Cê, nunca batia palmas a ninguém e era o maior, era o Jesse James francês, foi ao Egito e trouxe de lá um calhau com cem toneladas e agora todos os que passam por Paris gritam "olha o calhau do Napoleão", mas ele nunca batia palmas a ninguém, trazia sempre a mão direita enfiada no casaco, e essa mão tinha seis dedos, um deles enorme que servia para enfiar no rabo de todo o mundo, só foi lixado pelos comunistas, apanharam-no no meio da neve, cheio de frio e mataram-lhe os soldados todos, mas não se atreveram a tocar-lhe, o Dom Afonso Henriques também não batia palmas a ninguém, nasceu já com a sua espada enorme na mão, dizem que abriu caminho através da barriga da mãe e que foi um dos primeiros a nascer de cesariana invertida, na verdade ele nunca gramou a progenitora, passava o tempo a fazer-lhe tropelias e a ameaçá-la com a espada e quando cresceu dava-lhe cada coça que até fervia, mas o que ele queria mesmo era matar mouros, se estava muito bem a descansar depois de uma conquista e ouvia falar de um castelo de sarracenos endiabrava-se, montava-se no cavalo e lá ia ele a galope, brandindo o espadalhão faiscante, tinha mais força do que um urso porque a espada pesava mais de vinte quilos, todos fugiam à frente dele mas a admiração pela sua passagem era tanta que logo decidiam segui-lo, pessoas, animais terrestres e aves corriam ou voavam atrás dele num alarido medonho que espavoria os mouros, foi assim que o nosso primeiro rei conquistou este país, e dizem que, no seu modo abrutalhado de lidar com tudo, tinha um cavalo a quem chamava porco quando queria espevitá-lo, e querendo que este corresse mais depressa gritava “porco galllll”, o que, querendo dizer “porco galopa”, foi entendido como Portugal e todos pensaram que era o nome do país que queria conquistar, o nosso rei fundador foi uma categoria, um verdadeiro homem do Cê, por isso é que eu digo, Abrantes, a malta de boa cepa desconfia dos padres.

sábado, 13 de maio de 2017

31 - UM KARDECISTA DA TRETA

Padre Tortulho, o senhor não passa de um kardecista da treta, uma estrumeira de ilusões, um bandulho de flatulências malcheirosas. Sorva rapidamente caudais de infusões carminativas para expulsar essa purulência que lhe estupidifica o cérebro e o faz indigno de ser gente.
Sim, vossemecê deve andar possuído pelos espíritos daquelas raparigas irmãs que, há quase cento e setenta anos, espalharam a maluqueira espírita pela crendice americana, só por dizerem que ouviam estalidos e portas a ranger e viam os móveis a passear pela casa. Grande coisa! A minha prima Genoveva também assistiu a fenómenos semelhantes: começou a ouvir ruídos inusitados às seis da manhã, levantou-se para averiguar a origem e, quando deu por ela, estava amarradinha a uma cadeira e amordaçada, a ver passar todos os bens que tinha acumulado em casa. Mas não foram os espíritos, não, foram os irmãos Gadunhas, acabadinhos de sair da prisão do Linhó. Quando eu tinha dez anos, talvez por ler muitos livros, também imaginava imensas cenas dignas de um filme: pardais a falarem comigo, Deus a olhar comovido para mim, um ladrão debaixo da minha cama, o conde Drácula a entrar pela janela para me sugar o sangue, as nuvens a perseguirem-me pelo céu transformadas em lobos, as meninas da minha aldeia a levantarem a saia e a dizerem que o pipi delas era meu para toda a vida… Mas sempre que eu contei isto a alguém não me deram importância. Felizes foram as crianças americanas e os pastorinhos de Fátima!
O seu guia espiritual, por aquilo que vejo no facebook, deve ser o Alan Kardec, que na verdade não tinha este nome mas se chamava Cavalo de Pedra, tudo junto e em grego. Um francês de Lyon que não tem adeptos no seu país mas é idolatrado por milhões no Brasil. Sempre pensei que existia um conluio mascarado entre o Vaticano e o Kardec e alguns indícios começam a ser muito fortes. Dou aqui um exemplo: o atual papa chama-se Francisco e o líder kardecista mais importante do mundo, também, foi o Chico Xavier, um homem de Minas Gerais que tomava o pequeno-almoço a tratar de negócios com centenas de espíritos.
Devo dizer, no entanto, que ainda não entendi quem é o IKEA. Pelo que li no seu facebook, que o senhor não assume porque quer continuar a enganar as pessoas, é o Infinito Krill Espiritual do Amor. Uma espécie de analogia com o alimento básico dos mares e das grandes criaturas. O krill espiritual prolifera no mundo, seduz os homens de boa vontade e aperfeiçoa-lhes a alma para eles se integrarem no absoluto. No entanto, na mensagem ameaçadora que me dirigiu fala dele como um chefe alien, que comanda os ellogs para fazerem javardice com os humanos e procriarem. Isso já não é propriamente kardecista. Tenha cuidado! Por esse andar vai ter de se esconder do Papa e do Chico Xavier (do espírito, claro, porque o desgraçado faleceu).

Sabe, ando aqui a pensar que talvez o senhor não seja padre nem kardecista, talvez seja apenas maluco e assassino. Por isso baralha os nomes! Falou comigo a dizer que tenho premonições, mas devia estar a pensar noutra pessoa, talvez num dos seus apaniguados, como o Davoud, o iraniano que afinal é português nascido em França. Eu não sou o Davoud, sou o Francisco, o amigo do Silveira, e espero que o Bispo descubra tudo aquilo que você anda a fazer e o excomungue, enviando-o para os quintos do inferno.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

30 - EVANGELHO SEGUNDO O FACEBOOK


     «Naquele tempo, IKEA desceu à terra e espantou-se de que o animal mais promissor fosse, ainda, um ser tão incipiente e tacanho. Em verdade, verdade vos digo que esse animal tinha já desenvolvido um polegar oponível aos outros dedos, e caminhava já quase erecto, embora muito curvado; em contrapartida, a sua agressividade mostrava-se demasiado primitiva.

»IKEA e seus companheiros, os ellog, eram poucos. Poucos, poucos, verdadeiramente. Pior do que isto, entre eles não havia fêmeas. As suas fêmeas tinham sido exterminadas na mais odiosa guerra de todo o tempo. Por essa razão, os poucos machos que restavam, comandados por IKEA, entravam no planeta terra em busca de fêmeas de anatomia análoga, com as quais pudessem cruzar-se, de forma a que a espécie ellog não desaparecesse.

»IKEA olhou os hominídeos, e não se agradou deles. Os seus companheiros olharam as fêmeas hominídeas, e sentiram repulsa. Imaginaram o que seria praticar o coito com aquelas fêmeas, hirsutas, encurvadas, incapazes de linguagem que não fosse de urros e gritos, e repugnaram-se. Todavia, não havia outro caminha para os ellog. O sacrifício seria a única solução.

»O primeiro fruto do seu plano, a primeira criatura híbrida, foi, pois, Adão. Descendente de um elogg e de uma hominídea.
»Em breve, a terra acabou sendo povoado e dominado por uma nova espécie, os humanos, espécie inteligente, maldosa, exploradora, transformadora, sensível e brutal, melancólica, irritadiça e criativa.

»IKEA e sua corte deixaram a prole, e regressaram a casa. Mas eis que os humanos esqueceram a História da sua criação e acreditaram em deuses e demónios, até que decidiram adorar um Deus Único, lhe ergueram templos e, em nome das religiões que fundavam, e de versões opostas desse Deus, se dedicaram alegremente à destruição uns dos outros, das outras espécies e da própria terra que habitavam.

»O Grande IKEA tudo isto ouviu e tudo isto soube. O Grande IKEA de tudo isto se desagradou, por tudo isto se impacientou, e contra tudo isto veio construindo um exército, que, no dia profetizado, destruirá os maus e os idiotas, os malfeitores e os indivíduos com aparelho nos dentes.

»Apressai-vos, Irmãos, apressai-vos. O tempo que Vos resta é mínimo. Purificai as mãos, libertai-vos do que vos pesa, despi-vos de trapos inúteis, telemóveis, toalhas de rosto, cremes de mãos, aparelhos dos dentes, cantai nas ruas Hossanas ao Grande IKEA. Em verdade, verdade vos digo, Irmãos: quem não se tiver preparado por dentro e por fora para a vinda do Grande IKEA, será dizimado, esborrachado como uma lagarta, reduzido a pó.»

O Chefe Abrantes, estupefacto, acabou de ler o extenso texto na página do Padre, e sacudiu tristemente a cabeça.
«O homem é doido, nomeadamente», disse para os seus botões.
Pareceu-lhe que um dos botões lhe respondia - a não ser que ele próprio, nomeadamente, também não estivesse muito bem da sua cabeça.