domingo, 24 de janeiro de 2016

17. A FÉ MOVE MONTANHAS!

Sr. padre Tortulho

Na minha infância, o meu pai costumava dizer que a Fé movia montanhas. Dizia-o muitas vezes com uma expressão jocosa, como se não levasse muito a sério a sua própria afirmação. E quando tinha amigos lá em casa chamava-os à janela e as paredes estremeciam com a risota. Posso garantir aqui que, falasse ele convictamente ou não, o dito era totalmente verdadeiro. A Fé passava todos os dias no passeio do outro lado da rua e gerava, nos que a viam, uma enorme sensação de insólito, porque os seios que se movimentavam com ela eram verdadeiras montanhas, enormidades glandulares absolutamente desproporcionadas em relação ao seu corpo de sessenta quilos. Soube, muitos anos mais tarde, que afinal se tratava de excesso de prolatina.
Se nesse tempo aprendi a acreditar na exuberância da Fé, desiludi-me, por outro lado, com as virtudes do clero.
Certo dia apareceu na minha rua um cantoneiro, nem sei a que propósito, viu a madona peituda, arregalou os olhos e nunca mais de lá saiu. Era já um pouco idoso. Ficava à espera da passagem dela, encostado ao carrinho da limpeza, e quando a mulher inundava aqueles olhos raiados de vinho tinto ele arranjava coragem para lhe atirar sempre o mesmo piropo subentendido:
— Ai menina, quem me dera ser bebé!
A senhora nunca lhe respondeu, mas de vez em quando sorria e tal possibilidade mantinha a esperança do homem.
O responsável pela desilusão do limpador de ruas foi o Frei João, um dominicano que não vivia em clausura por ser arquitecto e ganhar dinheiro para a Ordem. Tinha liberdade para exercer a arquitectura e aproveitava-a para beber, comer, contar anedotas, confessar senhoras, dizer mal dos padres e praticar convívio com toda a espécie de gente. Ora o frade acabou por conhecer a Fé no confessionário da capela do Solar dos Falcões, junto do Teatro Gil Vicente, em Cascais, e empenhou-se com tanta intensidade em conhecê-la mais profundamente que resolveu fazer serviço ao domicílio. Tudo teria decorrido no mais virtuoso sigilo se o enamorado cantoneiro não tivesse encontrado coragem para se tornar mais afoito e não resolvesse ir guardar, de noite, a porta da sua opulenta amada. Como sabia que ela não tinha marido, ao ver um vulto sair rápido e sorrateiro por uma janela julgou tratar-se de um bandido e atacou-o selvaticamente, matando-o com o golpe de uma pedra numa das têmporas.
Desde esse tempo, senhor padre, desliguei-me do respeito pela Igreja. Entristeceu-me a sorte do cantoneiro. Em relação a si, li várias vezes a sua carta e concluí que me estava a ameaçar. Se isso é verdade, então o que eu disse ao Silveira também o é e o Sr. deve ser mesmo o mentor desse grupo. Custa-me, Sr. padre Tortulho, que o Silveira ande metido com vocês, porque até me parece bom homem. Mas não se preocupe, não vou divulgar a ninguém as minhas suspeitas, pode estar descansado. Aliás, vou continuar aqui no Alentejo mais algum tempo.

Espero que ganhem juízo e se arrependam do mal que fizeram.