quarta-feira, 12 de agosto de 2015

9. A MINHA VIDA EM CASA DOS PAIS DO DAVOUD


Posso dizer que o Pompílio e a Iracema, emigrantes de Aveiro, foram a nossa salvação. Já me estava a ver sem dinheiro, em Paris, e sem saber o que fazer à vida. Eles acolheram-nos em casa, trataram-nos como se fôssemos família chegada, arranjaram-nos, inclusivamente, um trabalho durante um mês, levaram-nos a passear por todo o norte de França… Não tenho palavras para exprimir o meu enorme reconhecimento. Ele era, como já disse, um homenzarrão, teria trinta anos, meio arruivado, a barba com cerca de dez centímetros, com uma figura simultaneamente jovial e imponente que incutia nos outros um certo temor de o ver colérico. Ela era pequena, viva como a sardinha, segundo se dizia na altura, bonita, de cara redondinha, com uma inegável propensão para a sociabilidade mas, ao mesmo tempo, com uma necessidade imperiosa de embirrar com o marido. Todos os dias lhe triturava diversas vezes o juízo, por minudências desprezíveis, assanhando-se contra ele como uma gata, enfrentando-lhe a irritação até que, repentinamente, ele a agarrava, a punha ao colo e dizia “É por isso que não posso estar sem ela, é a única pessoa que me faz sentir pequenino!”, levava-a pendurada ao pescoço para o quarto e faziam amor. Ninguém consegue imaginar quantas vezes o faziam.

O casal de Aveiro tinha dois filhos, uma menina ruiva, de olhos azuis como os do pai, que se chamava Mariana e teria cerca de dois anos e um rapaz com três anos, de cabelo castanho e ar introvertido, que olhava com curiosidade para as coisas mas também de forma enigmática, nunca percebíamos o que se estava a passar naquele cérebro. David, assim se chamava ele, tinha no pescoço um sinal em forma de guitarra que era o orgulho do pai, este mostrava-o a toda a gente e afirmava que fora a sua enorme veia artística de tocador do referido instrumento que originara aquela marca no filho. A fama do miúdo alastrou de tal modo que certo dia apareceu lá uma equipa da televisão para fazer uma reportagem. O título foi qualquer coisa parecida com “Filho nasce com a figura da guitarra do pai no pescoço”

Durante o mês de agosto o Pompílio arranjou-me um emprego como substituto de uma concierge que estava de férias. As minhas tarefas consistiam apenas em manter as escadas e os corredores do prédio em questão razoavelmente limpos, sem papéis, beatas, marcas de patas de cão, nódoas e ajuntamentos de pó. No início levei a minha responsabilidade ao extremo, limpando tudo exaustivamente e cumprindo o horário. Depois, um argelino dono de um minimercado que existia no rés-do-chão do prédio, começou a rir-se do meu zelo e ensinou-me a dormir deitado em três cadeiras na arrecadação das limpezas. Comecei também, pressionado pelos meus anfitriões, a largar o serviço às três da tarde, mas embora eles quisessem que o fizesse à hora do almoço nunca fui capaz de tal mandronguice.

Aos fins de semana, durante o mês de agosto, íamos para a casa do cônsul americano em Versailles, porque este estava de férias nos EUA e era um casal amigo do Pompílio e da Iracema que tratava da propriedade, vivendo mesmo numa das várias casas que esta possuía. Comíamos tanto e tantas coisas que já não tínhamos barrigas mas sim bandulhos e o sangue parecia ficar muito mais fluído com a ingestão de Ricard  e cerveja, de tal forma que à noite, no salão da casa principal, o meu cérebro pairava muito acima da cabeça enquanto eu rodopiava nos braços da Iracema, ao som de músicas populares tocadas pela guitarra do Pompílio e pela concertina do amigo, também ele de Aveiro.

Ai Silveira, é por isso que eu nunca dirigi a palavra ao Davoud. Cumprimentei-o várias vezes, mas é-me doloroso pensar na tragédia que aconteceu aos pais, nesse mesmo verão, no final de setembro, quando regressavam de Portugal e foram abalroados, numa estrada espanhola, por um camião. Apenas escapou o miúdo, o David, que foi depois adotado não sei por quem e que agora diz chamar-se Davoud, que nunca teve nenhum irmão nem pais estrangeiros, a não ser que fossem os adotivos, isso já eu não sei.

domingo, 9 de agosto de 2015

8. UMA MULHER DE CABELO A ESCORRER, UNS JEANS SEBENTOS, UM TUBERCULOSO VEGETARIANO E A FIGURA DE ZEUS.



O apartamento da Madalena e do seu namorado turco tinha uma sala grande que dava diretamente para a porta de entrada, três quartos, uma cozinha, uma casa de banho, um cheiro muito esquisito que se entranhava na pele, o Cortes dizia que era uma mistura de odor de freaks com vapores de haxixe, barulho infernal a entrar pelas frinchas das janelas a qualquer hora do dia e da noite e uma passagem ininterrupta de visitantes oriundos dos mais diversos lugares e portadores das mais palpitantes esquisitices.

Parecia que meio mundo tinha a chave da casa. Os visitantes entravam a qualquer hora e, em regra, não ficavam mais do que um dia. O único frequentador quase permanente, além de nós, era um belga chamado Patrick, que apenas se ausentava para ir buscar carregamentos de haxe à fronteira, pois tratava-se de um dealer de excelente reputação. Era um local relativamente perigoso, mas cheio de episódios interessantes. Lembro-me de dois holandeses que vestiam sempre os mesmos jeans, há meses, e que quando os tiraram para dormir estes ficaram em pé, lado a lado, à espera dos donos na verticalidade, pois a sujidade sebosa que se entranhara neles entesava-os de tal modo que não os deixava tombar. Recordo-me de um rapaz com cerca de 10 anos de idade a olhar para nós enquanto comíamos um frango e a gritar que éramos carnívoros e que por isso iríamos morrer muito cedo, o pai dele não comia carne, só vegetais, tofu, seitan, rebentos de tudo e mais alguma coisa, e por isso tinha muita força, era o homem mais forte do mundo. Alguém nos disse, no dia seguinte, que o referido pai estava tuberculoso.

No apartamento em frente ao nosso vivia uma mulher ainda nova e até bonita, mas que apresentava um comportamento também digno de registo. Todos os dias batia à nossa porta, abríamos e ela entrava, com o cabelo muito comprido e a escorrer água, “La télé? Elle fonctionne?” perguntava ela, dava uma volta pela sala, nós não tínhamos televisão nenhuma, “Non, elle fonctionne pas!” concluía pesarosamente, encaminhava-se para a porta e saía.

Podia ficar aqui a tarde toda a contar as nossas experiências incríveis nessa casa, mas vou avançar para o que interessa. Um dia andávamos a passear no Jardin du Luxembourg quando um homem ainda novo, de estatura poderosa, com uma barba imponente e uma voz possante, ainda hoje me faz lembrar a figura de Zeus, estacou à nossa frente e nos perguntou se éramos portugueses. Tratava-se do Pompílio. Falámos com ele durante cerca de uma hora. No dia seguinte tocou-nos à porta.

“Agarrem nas vossas coisas e venham comigo, para minha casa. Já falei com a minha mulher. Isto não é lugar para vocês.”

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

7 - A MINHA VIDA EM PARIS ANTES DE CONHECER OS PAIS DO DAVOUD



Bom, amigo Silveira, continuando a nossa conversa de ontem, sobre o Davoud, volto a dizer que tenho a certeza de que era ele o miúdo que conheci em Paris. Lembro-me bem desse período, talvez o mais interessante da minha vida, e de quase tudo o que se relaciona com essa viagem.

Depois de regressarmos a Genebra, eu e o Cortes separámo-nos dos outros e fomos em direção a Paris. Ele continuava a arrastar a mala enorme, que parecia feita à medida do seu cérebro, pois toda a gente sabia que ele possuía um ampliador cabeça, os amigos tinham até elaborado tabelas para calcular rapidamente os descontos a fazer em relação às suas afirmações: às medidas dos animais, por exemplo, havia que aplicar uma taxa redutora de 75%, no caso das doenças, a redução chegava a atingir os 99%.

Como tínhamos de andar à boleia, a mala era um desmotivador de boas ações, por mais que os condutores tivessem intenção de parar e chegassem mesmo a imobilizar os veículos, a verdade é que quando as viaturas se apercebiam do seu tamanho descomunal desobedeciam às ordens dos condutores e aceleravam por vontade própria. Pelo menos era o que eu gostava de dizer, para irritar o meu companheiro de aventura.

Estávamos nós há 12 horas de braço esticado numa terra chamada chalon-sur-Saône, nunca me esquecerei do nome, quando fomos assolados por uma daquelas decisões que parecem nascer da frustração mas que, posteriormente, mostram ser fruto de uma ordenação mais alta, digo até divina: abandonámos a tarefa, entrámos num café, pedimos umas sandes e uma garrafa de vinho e regalámos as nossas papilas do bom gosto. Quando saímos já anoitecia, mas aquecidos pelo líquido de Baco e mais desleixados com as probabilidades, esticámos novamente os braços na berma da estrada principal. Ainda os dedos apontadores não estavam completamente direitos e já um citröen 2CV refreava o seu instinto galopante e estacava 5 metros à nossa direita. Nem queríamos acreditar. Lá dentro, um marroquino chamado Hassan, esticava os cantos da boca tentando chegar com eles às orelhas. “Ou allez vous?”, “Paris, Paris”, “Entrez, entrez”, “Et la valise?”, “Oh! Merde, que portez-vous en cette valise?”, “Le Portugal”, “Mais, c’est grand, le Portugal!”...

Conseguimos encafuar o malão e o Cortes nos bancos traseiros do automóvel e lá foi este, teimoso e lento, galgando quilómetros até à capital francesa. Hassan deixou-nos junto à estação do Metro Montparnasse – Bienvenüe, porque o nosso destino era ali perto, numa rua chamada Raymond Losserand, em honra do notável dirigente da resistência francesa executado em 1942. Eram quatro da manhã. O Cortes não quis incomodar as nossas amigas portuguesas anfitriãs àquela hora e por isso ficámos junto à gare, aquecendo-nos com o bafo dos respiradores do metro. Às seis da manhã olhámos em volta e concluímos, admirados, que Paris estava cheia de bêbados e sem-abrigo a tentarem aquecer-se como nós. É assim em todo o lado, amigo Silveira, por mais vaidosas que sejam as civilizações e as cidades, a miséria humana estende-se, incontornável, como um grande capacho onde as consciências podem limpar os pés e entrar calmamente nas casas limpinhas da civilidade. Enquanto não se tornar insuportável, a miséria não perturba, não contamina, limpa e fortalece a má consciência social. Quando deveríamos dizer “a sociedade não é boa porque muitos são tratados como coisas” pensamos “a sociedade é boa para muitos e felizmente eu sou um deles”. E os próprios despojados da condição humana, contaminados por esta deterioração do ponto de vista, acabam por afirmar “a sociedade não é boa para mim porque tive azar ou não a mereço” e depois invertem o pensamento e concluem “eu não sou bom para a sociedade”.

As nossas duas amigas tinham cada qual o seu apartamento no n.º 2 do squat da rua Raymond Losserand. Um squat é um prédio votado ao abandono que é ocupado por pessoas que não são donas nem pagam renda nem têm autorização para o fazer. No caso daquele, não era apenas um prédio, era todo um quarteirão. Tinha sido ocupado por gente com ideais de vanguarda mas o tempo substituíra muita dessa gente por imigrantes das mais diversas nacionalidades e por toxicodependentes. Chegámos lá às sete da manhã e fomos recebidos pela Fátima, uma amiga portuguesa com ar beduíno que vivia com um argelino chamado Mustafa, o qual parecia nunca lavar a cabeça e passava o tempo todo deitado a ler um livro qualquer da faculdade e a enrolar com o dedo indicador da mão direita um tufo de cabelo encaracolado, que dava a sensação de escorrer óleo.

Fátima levou-nos ao 3.º andar e alojou-nos na casa da outra amiga, chamada Madalena, que tinha ido passar uns tempos à Turquia com um namorado dessa nacionalidade. Vivemos ali 3 semanas cheias de peripécias e estranhezas, amigo Silveira, e apenas a boa vontade dos pais do Davoud, pois tenho a certeza de que eram os pais dele, nos livrou daquela situação bizarra.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

6. COMO É QUE EU CONHECI O DAVOUD



Pois é Silveira, aquele teu amigo, o Davoud, tenho a certeza de que o conheci em Paris, quando tinha vinte anos, foi no verão antes de entrar para a Faculdade, ele não se lembra de mim, nem é suposto lembrar-se, pois nessa altura não tinha mais de 3 anos, mas eu reconheço-o por causa de um sinal que tem no pescoço, hás de reparar, parece que às vezes quer espreitar por baixo dos colarinhos da camisa como se, ao mesmo tempo, sentisse uma enorme curiosidade e quisesse passar despercebido.

Lembro-me de o dito sinal ser notícia na TF1. O miúdo tinha uma guitarra elétrica no pescoço, com cerca de três centímetros, bem delineada, parecia milagre, porque o pai, o Pompílio, era guitarrista aos fins de semana, tocava nos bailes dos emigrantes portugueses, cheguei a ir a um deles, cheirava a sardinha e a bacalhau assado e muitas bochechas tinham a cor do vinho e tudo dançava ao som de cantigas brejeiras, viras minhotos e risadas de acordeão.

Em junho eu, o Cortes, o Carvalho, o primo do Carvalho e o Lagos, animados pela abertura à Europa que a revolução de 74 tinha trazido aos jovens, libertando-os também da saloiada salazarista, a que infelizmente estamos a voltar, pelo menos na desconfiança e na burocracia, em junho, dizia eu, decidimos meter-nos no comboio e ir para a Suíça, passear e ganhar algum dinheiro a apanhar fruta, ou talvez tomate, já não me lembro, do que me lembro é que estávamos com uns tomates do caraças, com um herói dentro de cada uma das bolinhas a espevitar-nos as hormonas e a excitar-nos com a perspetiva da viagem.

Na noite anterior reunimo-nos no Piper´s, um bar junto ao mercado, e a coisa começou logo a ganhar dimensões épicas, cada um de nós pediu uma imperial, exceto o Carvalho, que solicitou educadamente, como era seu hábito, um sumo de laranja, que naquele tempo era feito com uns pós estranhos, a que chamavam essência, ora o essencial da questão é que mal o desgraçado levou a bebida à boca começou a inchar, a inchar, o cimo do pescoço, os beiços e as bochechas pareciam querer arrebanhar todo o sangue e restantes líquidos do corpo, “porra, temos que correr para o hospital senão este gajo morre e lá se vai a viagem!”, saímos sem pagar, os empregados aperceberam-se da situação mas disseram para irmos à vontade, que a despesa era por conta da casa, subimos a Avenida 25 de Abril, a caminho do hospital, com o Carvalho transformado numa lástima empolada, mas o primo dele tinha uma máquina fotográfica, que havia comprado de propósito para a viagem, e queria começar a usá-la o mais cedo possível, vá-se lá saber porquê achou que aquela peripécia já fazia parte da grande aventura e toca a mandar-nos parar para tirar uma fotografia à carantonha do infeliz, o Carvalho nunca mais lhe perdoou esse capricho artístico que, na opinião dele, constituiu um atentado aos valores da solidariedade e da família, embirraram um com o outro durante toda a viagem e ainda hoje não se falam.

No dia seguinte partimos da gare de Santa Apolónia, no Sud Expresso, cada um de nós levava aquilo que considerava essencial, eu tinha alguns pares de cuecas, um licor que surripiara não sei donde e que tinha a marca “Campino”, e ainda uma gramática de latim, porque tinha feito exame e não sabia se precisava de o repetir, o Carvalho carregava um saco cheio de conservas e chouriços, o primo, o Dinis, levava a máquina fotográfica e muitas pernas de frango assadas e picantes, porque o pai era dono de uma churrascaria, o Lagos, que me lembre, apenas viajava com uma grande curiosidade, uma enorme magreza e o sonho de ser um ator de relevo, devo dizer que conseguiu isso, entrou para o Conservatório e fez carreira, finalmente o Cortes arrastava com esforço um enorme malão castanho, cheio de roupas, porque pretendia seguir da Suíça para Inglaterra, ao encontro da sua namorada, que estava lá a trabalhar como enfermeira.

Fomos a caminho de Martigny, no cantão francês, passando por Lyon, Genève e Lausanne, embora estivéssemos a entrar no verão havia um frio do caraças e a apanha da fruta estava muito atrasada, apenas iria começar dali a três semanas, por isso decidimos regressar a Genève, porque não tínhamos dinheiro para aguentar a carestia de vida suíça durante tanto tempo.

Foi na bonita cidade de Lausanne, a caminho de Genève, que o meu licor “campino” cumpriu a sua função. Depois de jogarmos xadrez nos tabuleiros desenhados nos pavimentos, passámos a noite na gare, tentando resguardar-nos do frio intenso. A sala estava cheia de clientes como nós, também eles enregelados. “Fermez la porte” era a única frase que se ouvia quando alguém entrava. Todos cumpriram aquela mistura monocórdica de ordem e solicitação até que entrou uma mulher desgrenhada, ainda relativamente jovem, magra e loira, que abriu as portas de par em par e se recusou a fechá-las, gritando que em Espanha uma família inteira tinha morrido com monóxido de carbono numa sala. Ficou à entrada, com a corrente glacial a passar por ela, a atropelar os palavrões que lhe eram atirados de todos os lugares e a congelar as carnes e os ossos. Ao fim de cinco minutos de lengalenga, que pareceram uma eternidade, foi-se embora e logo meia dúzia de corpos enregelados se levantaram para vedar o acesso ao ar gélido da noite. Acomodámo-nos todos, aliviados, mas o nosso otimismo durou muito pouco, eis que a mulher voltou a irromper na sala, gritando “vous êtes fous, oh oui, en Espagne une famille entière…”. A cena repetiu-se várias vezes, de tal modo que os palavrões em francês já não conseguiam elevar-se no ar gelado, caíam mal eram arremessados da boca, e foi então que eu abri a garrafa de licor e esta passou por todas as bocas da sala e tenho a certeza de que nunca aquela bebida açucarada, alcoólica e enjoativa foi tão unanimemente apreciada.

Bom Silveira, hoje não tenho tempo para te contar o resto da viagem e como encontrei os pais do Davoud, o Pompílio e a Iracema. A minha mulher está à espera. Se estiveres aqui amanhã, a esta hora, ficarás a saber tudo.