segunda-feira, 26 de junho de 2017

36 - QUAL É AFINAL O NOME DA MULHER?


Os que lerem este processo documental sobre a insólita experiência do morticínio que assolou esta terra dar-se-ão conta de que, quando o narrador, que sou eu, escreve para clarificar a sequência, utiliza estilos de discurso muito diferentes, mas, de fato, sou sempre um e, de t-shirt, outro, mudo a minha forma de escrever de acordo com o vestuário que uso, e também penso de maneira muito diversa, e vejo coisas, às vezes até me parece que sou mais do que uma pessoa, sempre me aconteceu isto, chegaram a dizer que eu era esquizofrénico, a gente sofre muito nesta vida, às vezes são todos em cima, a picar, a picar, e ninguém acredita em nós se nos queixamos.
Segundo afirma Pereira, a inspetora, quando a patroa do Safari, a dona Isilda, ou Laura, enfim, um nome parecido com estes, ouviu o padre dizer que vinham lá os Ellog, franziu o sobrolho
— Se vêm, batem com o nariz na porta. Hoje quero fechar mais cedo.
O Chefe Abrantes revoltou-se, pois estava a ver o fio da sua investigação partir-se com a má vontade da Hirondina, a patroa do Safari, ou Laura, não sei bem.
— Que raio! Então isto está sempre aberto, indevidamente, diga-se em abono da verdade, até às duas da manhã e hoje, que está a abarrotar de clientes, nomeadamente, vossemecê quer fechar o café às onze? Deixe-se de tretas, guarde a faca e vá para dentro fazer negócio.
Nessa altura a Guilhermina, ou Hirondina, ou Laura, não me lembro bem do nome, mas isso não é importante, confessou que queria fechar mais cedo porque o Virote, que era de Miranda do Corvo e tinha cara de osga, estava em casa dela a cozinhar negalhos, um petisco feito na sua terra, com tripas de cabra aos pedacinhos a encher o bucho do mesmo animal, uma iguaria que ele, na sua ingénua bazófia transmontana, garantia ser a melhor do universo.
Irra! — Rosnou o Abrantes. — Deixe os namoricos para mais tarde, senão ainda mando fechar isto nomeadamente, pois não tem condições.
A mulher achou por bem não afrontar a autoridade e encaminhou-se para a porta. Porém, viu que esta estava atravancada pelo cómico F. Mendes, entalado por causa do bandulho cheio de febras de porco.
— Tirem-me daqui este emplastro! — Rosnou.
O pessoal que se encontrava dentro da tasca empurrou brutalmente o gordo e este desencaixou-se, caindo e rolando pela calçada. Levantou-se como se tivesse molas e desatou a cantar.
“Na estrada do ribeirão, faleceu um cão, de patas para o ar, passou lá o frei João e julgou que o cão estava a rezar, deitou joelhos ao chão e maravilhado pôs-se em oração, e perdeu toda a noção, foi atropelado por um camião.”
— Irra! — Gritou o Chefe. — Como é que se pode investigar o que quer que seja, nomeadamente porra nenhuma?
O cómico pôs-se a dar voltas, ostentando um equilíbrio do caraças e, como já tinha uma grande audiência de olhos avinhados e de sorrisos fumarentos, decidiu cantar um fadinho em honra do senhor padre, que o tinha acompanhado na comezaina.
“Na igreja da Conceição, estava um padre no sermão, quando a morte apareceu, levou o padre pela mão, deitou-lhe o corpo no chão, coitadinho faleceu. O povo, escandalizado, protestou indignado pelo fim da pregação: morte não sejas assim, leva esse padre no fim, deixa acabar a oração. Ao ver tanta devoção, a morte trouxe-o pela mão, pra fortalecer a fé. Quando acabou o sermão, deitou-o de novo ao chão, foi aplaudida de pé.”
— Vivam os ellog, senhor padre! — Gritou o cómico, depois do fado.
Olharam todos em volta e não viram sinal do sacerdote, para desconsolo do Abrantes. O Firmo Formigal tecia considerações metafísicas sobre a situação. O Jacinto do Cê recusava bater palmas ao cantor, a dona do Safari, talvez afinal se chame Marcolina, não sei bem, resmungava que queria ir comer os negalhos do Virote…

— Vamos mas é embora deste inferno! — Exclamou o Chefe, exasperado pela balbúrdia da investigação que, nomeadamente, não era investigação nenhuma.

terça-feira, 13 de junho de 2017

35. AFIRMA PEREIRA


A inspectora Zé Pereira afirma que o Chefe Abrantes não chegou a ter tempo para desenvolver as suas ideias, porque o Padre, precisamente o Padre acerca do qual se falava, acabara entretanto de chegar ao Safari.

Afirma Pereira que se fez um silêncio confrangedor, que é o género de silêncio que se instala sempre que, quando se fala nas costas de uma «certa e determinada pessoa», sucede que, precisamente, a «certa e determinada pessoa» em causa aparece, de supetão, no lugar em que a conversa decorre.

Afirma Pereira que o que passou imediatamente pela cabeça do Chefe terá sido que, o seu desígnio, inesperadamente, e por obra dos astros, afinal se realizava. Ali estavam, pois, Cê, o Padre e Formigal, não propriamente numa sala de interrogatório, mas no Café Safari, onde eu próprio tantas vezes me deliciei com uns caracóis à Bulhão Pato, e... ai, cala-te boca, cala-te boca, pára de salivar, ó boca cheia de tantas e tão boas memórias, que ainda te arriscas a avariar aqui esta geringonça!

Afirma Pereira que a patroa, apanhada de surpresa, de faca na mão, pelo Padre, que ela não sabia que não era já um padre normal há muito tempo, se lhe ajoelhou aos pés, começando a chorar como uma Madalena.

Afirma Pereira que o Chefe interveio. (Pereira disse-me: «interviu».)

Afirma Pereira que, nomeadamente para aqui, nomeadamente para ali, o Chefe retirou a faca à senhora, sentou, com modos algo bruscos, o Padre numa cadeira, calou o Cê com nada mais do que um único e ferocíssimo olhar, tranquilizou o Formigal com a promessa de que poderia inventar, para a investigação em curso, o maior, o melhor, o mais criativo, o mais cúbico, o mais estapafúrdio (Pereira dizia: «espatafúrdio»), o mais eufórico, o mais glorioso, o mais louvável, o mais rico de todos os nomes de que o seu brilhante espírito fosse capaz.

Afirma Pereira que, quando o Chefe ia dar início ao seu discurso, à Poirot, o cómico gordo apareceu intempestivamente, a correr muito devagarinho, como apavorado; porém, não conseguia entrar pela porta. Cê levantou-se para o ajudar, enquanto Firmo Formigal, já inteiramente mergulhado em si próprio, não tinha ouvidos senão para as ideias que o seu tempestuoso e sublime cérebro disparava de si para si.

Afirma Pereira que, entalado na porta, o cómico gordo berrava: «Eles vêm aí! Eles vêm aí!»

Afirma Pereira que a patroa, de imediato, se reapoderou da faca, que o chefe pousara simplesmente sobre a mesa.

Afirma Pereira que alguém (ela não podia, por escrúpulo, precisar de qual deles se tratava, até porque não se encontrava «in loco») perguntou: «Mas quem diabo vem aí, criatura!?»

Afirma Pereira que, então, o Padre, por sua vez, se ergueu, de olhos iluminados como um profeta (ou, mais provavelmente, como um maluquinho), e disse:

«Os ellog. Chegaram os ellog!»

segunda-feira, 5 de junho de 2017

34. GALINHAS PERNETAS, UM BANDULHO CHEIO DE FEBRAS E UM APERTO DE MÃO “PEIXE MOLHADO”




Embora gostasse de me anular, a mim, o narrador, de me limitar a recolher e a organizar as pérolas documentais que engordam este caso retumbante, que assombrou as cabeças de todos os que deram conta da sua existência, a verdade é que, de vez em quando, sinto que este processo necessita do meu contributo narrativo para esclarecer a sequência e edulcorar a brutalidade insólita dos acontecimentos. Todo o material que aqui divulgo tem origem na investigação realizada a posteriori (malditos filósofos!) pela minha prezada amiga inspetora Zé Pereira, pessoa de elevadíssimo gabarito intelectual, que acumula, com a profissão de polícia, muitas outras competências, tais como cartomante, astróloga, quiromante, massagista, apreciadora de vinhos e técnica de endireitação de pernas de galinha. Poderão pensar, aqueles que me lerem, que esta última competência é mesquinha, ridícula mesmo, mas a verdade é que ela exige uma técnica muito fina e rigorosa, que não está ao alcance da chusma. A inspetora concretiza esta sabedoria prática do conserto das pernas das aves na aldeia de Bico Calado, uma povoação que se destaca ali para os lados da Lourinhã, conhecida pelo facto de todos os habitantes adorarem galinhas vivas e as deixarem andar em liberdade, debicando as ervas e quase tudo o que encontram, tornando quase todos os recantos visíveis desprovidos de vegetação, pequenos mamíferos, repteis, insetos e caracóis... Por isso não é de estranhar que a alimentação usada por essas bandas seja constituída por peixe e ovos. Sempre que chega lá, ao fim de semana, a nossa inspetora tem à sua espera vários animais com os ossos das pernas, nomeadamente, como diria o Chefe Abrantes, tíbias e fíbulas, fracturados por atropelamentos, dentadas de cães vadios, lutas de galos, atração por buracos indevidos e pontapés de rapazes vindos de outras aldeias e que jogam à bola com elas antes de os donos darem por isso e os expulsarem, também ao pontapé. Pele de toucinho, tiras de cana, azeite, cascas de ovo e ráfia são os únicos materiais que ela usa, mas com uma capacidade regenerativa que roça a perfeição. Muitos tentaram, durante a sua ausência, arremedar esta prática, mas os resultados foram sempre os mesmos: galinhas com um coto a ver o chão do alto e a perna boa a tentar afanosamente muscular-se para aguentar sozinha com o peso do animal.
Segundo o que eu ouvi à inspetora, e que faz todo o sentido, o Chefe Abrantes conseguiu juntar, na esplanada do café Safari, o Cê e o Firmo Formigal, na tentativa desesperada de uma frase inspiradora que lançasse alguma luz no seu entendimento, cada vez menos fecundo. 
A primeira coisa de que o Cê falou não tinha nada que ver com os homicídios, tratou-se apenas de informar o Abrantes de que tinha visto um comediante muito gordo, de nome F. Mendes, filho de outro comediante muito gordo que fazia o público rir por mostrar a barriga, entrar no restaurante Traquitanas, que fica do outro lado da rua, atafulhar-se de febras e bebida e ficar entalado na porta quando se preparava para sair, tiveram de vir os bombeiros de Alcabideche para o desentalarem — como era um artista trouxeram a fanfarra — e isto era mais uma prova de que o Cê é o maior, não ele, Jacinto, mas o verdadeiro Cê, ninguém escapa à sua vigilância e à sua balança compensatória, cá se fazem cá se pagam, muito riso traz choro e muito choro traz riso e quer se trate de comédia ou de tragédia apenas há que bater palmas ao maior, que é o Cê.
     — Que diabo é que isso tem a ver com os homicídios, nomeadamente? — Exasperou-se o Abrantes.
— Porra, Chefe! As mortes também são do Cê! Sabes quem é que estava a comer febras com o cómico? Nomeadamente…não sabes! Era o padre, o gajo a quem batem palmas. Estás a ver?
— Ah! O padre! Nomeadamente o padre. Sempre o padre! Não me cheira bem, nomeadamente aqui. E você, Firmo? O que acha?
— Sim, parece mesmo vomitado.
— Chiça, as mortes, falo das mortes, nomeadamente as dos que morreram mesmo!
O Firmo começou então a derramar a sua incomensurável intelectualidade no cérebro confuso do Abrantes. O caso ainda se apresentava totalmente indecifrável porque não tinha nome. Contrariamente ao que as pessoas vulgares pensam, os nomes não são simples etiquetas, não, eles têm o poder de transformar a realidade, ser Firmo não é o mesmo que ser Flácido, as palavras entranham-se nas coisas e insuflam-lhes uma nova forma de existir. Quando andava na Faculdade, por exemplo, a aprender Filosofia, os professores possuíam características idênticas às das pessoas comuns: um cuspia perdigotos enquanto falava entusiasticamente de Descartes, outro dava aulas sentado e baixava-se a toda a hora para mexer nos atacadores dos sapatos, outro ainda bebia cerveja e esbugalhava os olhos, outro comia as alunas com os olhões, existia também outro que ficava com os movimentos suspensos enquanto a caspa se acumulava nas enormes golas da sua camisa preta… Se os alunos atentassem apenas nestes comportamentos, debandariam rapidamente dali para encontrar algo mais promissor. Mas não era o que eles diziam ou faziam que tinha realmente importância, o que interessava era terem o nome de Professores Doutores de Filosofia. Era aí que tudo ganhava sentido. Também as operações policiais têm de possuir um nome para terem esperança de sucesso. O Firmo ensinara isso a milhares de investigadores e ele próprio nomeara várias dessas investigações: apito ferrugento, chave torta, fidalgo paralítico, primos maralha, limpeza sebenta, cabeça de galhos… Tantos, tantos nomes! E tudo com sucesso! Depois de apelidar a operação o Chefe Abrantes tinha de compreender várias coisas sine qua non valia a pena marrar mais, a saber: distinguir pessoas de coisas e de outros animalejos; conhecer bem os quatro pontos cardeais e entender que há sempre um portal para uma nova dimensão; não abusar das secreções da próstata porque enfraquecem o raciocínio; aceitar qualquer pista, mesmo as de motociclismo; procurar alguém que dê um aperto de mão do tipo peixe molhado, porque esse tem sérias possibilidades de ser o assassino, excepto se não o for, o que é muito pouco provável se tivermos fé.
— Porra! — Exclamou, por esta altura, o Abrantes, cada vez mais confuso. — Que raio é isso de peixe molhado?
— São aqueles gajos que fazem a mão mole e suada para cumprimentar os outros. E fria. Há muitos.
— Mas o padre não cumprimenta assim!
— Nunca se sabe, nunca se sabe, pode estar a esconder-se — aclarou o Firmo.
Olharam os três para o lado, em simultâneo, e repararam que a dona do Safari, a Laura, estava ao lado deles com uma enorme faca pontiaguda na mão, era a primeira vez que a viam cá fora.
— Tenho de arrumar as cadeiras. É tarde. 
— Porquê a faca? — Perguntou o Chefe.
— Nunca se sabe. É melhor prevenir do que remediar.

sexta-feira, 2 de junho de 2017

33. O INTELECTUAL


O Chefe Abrantes andava confuso. E profundamente ansioso.
Ouvia o Cê, por um lado (a falar-lhe nos donos disto tudo), e começou a pensar que este mundo era realmente muito complexo! Por outro lado, havia o padre, que se intitulava o Papa de uma estranha organização, dessas que profetizam apocalipses; e que dizer dos assassinatos por solucionar? E do seu IRS por preencher? E dos problemas com o seu filho, que andava pelos caminhos da perdição - concretamente, ligado a uma organização de tráfico de bananas da Madeira? E tudo, e tudo?

Por essa altura, teve a genial ideia de recorrer a Firmo Formigal.

Firmo era um intelectual. Tendo-se licenciado em Filosofia, coitado! e não encontrando emprego no melancólico mercado de trabalho português, onde os lugares para filósofos não abundam propriamente, acabara por aceitar uma posição na polícia. A posição era: sentado. Ao menos isso.

Nunca se pensou que Firmo Formigal tivesse as qualificações para singrar na polícia. Mas a verdade é que aconselhava agentes stressados; escreveu uma sebenta de psicologia, por onde os formandos tinham de estudar coisas relacionadas com: 1. lidar com pessoas; 2. detectar, pela expressão do rosto e pela mímica, quando o interrogado era inocente ou culpado. [Por exemplo: se a pessoa principiava a suar, estava com certeza a mentir, a não ser que suasse - há sempre excepções - mesmo que estivesse a ser sincero!]; 3. etc.

Mas o grande, grande, grande triunfo de Firmo Formigal, foi a criatividade demonstrada na invenção de nomes de difíceis e megalómanas operações. Oh, meu Deus! Rendamo-nos ao humor e à subtileza. Lembram-se de «Operação Apito Dourado»? Foi ideia dele. «Operação Irmãos Metralha»? Dele. «Limpeza de Pele», «Operação Bombokas», «Operação Ide Passear e Beber água»? Dele, dele, dele.

Chefe Abrantes foi, pois, aconselhar-se.

Encontrou-o a beber uma água sem gás, enquanto relia uma passagem particularmente confusa de Sein und Zeit. Lá estava Firmo, sempre sentado. Grisalho, barbudo, magríssimo, com a pele pouco cuidada.
A ideia de Chefe Abrantes resumia-se, se ouso assim exprimir-me, ao seguinte disparate: reunir o padre louco e o eminente Cê numa sala de interrogatório - para quê? Não me interessa, o próximo escritor que descalce a bota! -, sob o olhar perscrutador de Firmo Formigal, o intelectual. Ele que o ajudasse.

Se a isto se pudesse acrescentar um nome sonante para a operação em curso, seria ouro sobre azul.





segunda-feira, 22 de maio de 2017

32. O CÊ É O DONO DISTO TUDO

O Cê é o dono disto tudo

(monólogo do JC com o chefe Abrantes à porta do café Safari)


Olha Abrantes, sei que andas desconfiado do Padre e tens razões para isso, essa gente não é de confiança, dizem que são pastores mas, cá para mim, são mas é lobos, e dos maus, todos me chamam Jacinto do Cê porque sabem que para mim o dono disto tudo é o Cê, desculpa estar com este rameuméu mas é a mais pura das verdades, o pessoal sabe disso muito bem, basta ouvir as conversas do dia-a-dia para o perceber, tudo pertence ao Cê, os animais, as plantas, os filhos, as mulheres, os amigos, a vida, o mundo, o próprio Cê, porra!, toda a gente diz que pertence a ele próprio, é por isso que eu fico raivoso quando vejo baterem palmas aos padres, ou a qualquer outro que não seja o Cê, quando andei na tropa também era a mesma trampa, chegava o coronel ou o simples tenente e pronto, toda a gente estava em sentido, batendo palmas a qualquer bazófia que lhes saía da boca, só o Chaimite é que não ligava nenhuma, era magro como um esqueleto e ruço e mijava na cama, tinha os dentes da cor da caca das crianças e estava sempre a tirar macacos do nariz, a enrolá-los e a ameaçar limpá-los à farda do mais próximo, ria, mostrando aquelas tacholas enormes, e quando passava o coronel ele não se punha em sentido, metia os ossos da mão no bolso roto das calças e acariciava o fueiro, "es­tou a batê-las" dizia, enquanto os outros lam­biam as botas do coronel, por fim acharam que era maluco e mandaram-no para casa, à saída do quartel ele voltou-se e riu, num riso asmático, mostrando as dentuças amarelentas, tirou um macaco do nariz, amassou-o bem e colou-o, com todo o cuidado, nos ferros do portão, e depois lá foi, rindo e massajando o fueiro, feliz da vida por não bater palmas, no oeste americano ninguém batia pal­mas ao Jesse James e o Jesse James era o maior, sacava das pisto­las com a rapidez de um foguete e bum, bum, era só matar, eles caíam no pó como espantalhos, uma vez chegou a uma cidade e estavam oi­to à espera dele, desceu do cavalo, coçou-lhe o focinho, prendeu­-lhe as rédeas, os outros estavam cagados de medo, e então ele voltou-se como um diabo, antes de sacar as pistolas já as tinha nas mãos, deu um salto enorme, cuspindo chumbo, e eles começaram a cair com a admiração estampada na cara e a vida a esgotar-se por um buraco entre os olhos, ficaram estendidos no pó da rua, e o Jesse James soprou o fumo das pistolas, meteu-as nos col­dres, passou por entre a multidão batendo com os tacões, entrou no salão, que era o Safari lá do sítio, e pediu um uísque duplo, bebeu de um trago, saiu, olhou tudo e todos com desprezo, montou o cavalo e afastou-se a trote, e só então o povo arranjou coragem para bater palmas, bateu durante a tarde inteira, até o cangalheiro esqueceu o seu trabalho, até os mortos se levantaram para mandar com as mãos uma na outra, o Napoleão, que foi talvez o gajo mais esperto que já existiu, a seguir ao Cê, nunca batia palmas a ninguém e era o maior, era o Jesse James francês, foi ao Egito e trouxe de lá um calhau com cem toneladas e agora todos os que passam por Paris gritam "olha o calhau do Napoleão", mas ele nunca batia palmas a ninguém, trazia sempre a mão direita enfiada no casaco, e essa mão tinha seis dedos, um deles enorme que servia para enfiar no rabo de todo o mundo, só foi lixado pelos comunistas, apanharam-no no meio da neve, cheio de frio e mataram-lhe os soldados todos, mas não se atreveram a tocar-lhe, o Dom Afonso Henriques também não batia palmas a ninguém, nasceu já com a sua espada enorme na mão, dizem que abriu caminho através da barriga da mãe e que foi um dos primeiros a nascer de cesariana invertida, na verdade ele nunca gramou a progenitora, passava o tempo a fazer-lhe tropelias e a ameaçá-la com a espada e quando cresceu dava-lhe cada coça que até fervia, mas o que ele queria mesmo era matar mouros, se estava muito bem a descansar depois de uma conquista e ouvia falar de um castelo de sarracenos endiabrava-se, montava-se no cavalo e lá ia ele a galope, brandindo o espadalhão faiscante, tinha mais força do que um urso porque a espada pesava mais de vinte quilos, todos fugiam à frente dele mas a admiração pela sua passagem era tanta que logo decidiam segui-lo, pessoas, animais terrestres e aves corriam ou voavam atrás dele num alarido medonho que espavoria os mouros, foi assim que o nosso primeiro rei conquistou este país, e dizem que, no seu modo abrutalhado de lidar com tudo, tinha um cavalo a quem chamava porco quando queria espevitá-lo, e querendo que este corresse mais depressa gritava “porco galllll”, o que, querendo dizer “porco galopa”, foi entendido como Portugal e todos pensaram que era o nome do país que queria conquistar, o nosso rei fundador foi uma categoria, um verdadeiro homem do Cê, por isso é que eu digo, Abrantes, a malta de boa cepa desconfia dos padres.

sábado, 13 de maio de 2017

31 - UM KARDECISTA DA TRETA

Padre Tortulho, o senhor não passa de um kardecista da treta, uma estrumeira de ilusões, um bandulho de flatulências malcheirosas. Sorva rapidamente caudais de infusões carminativas para expulsar essa purulência que lhe estupidifica o cérebro e o faz indigno de ser gente.
Sim, vossemecê deve andar possuído pelos espíritos daquelas raparigas irmãs que, há quase cento e setenta anos, espalharam a maluqueira espírita pela crendice americana, só por dizerem que ouviam estalidos e portas a ranger e viam os móveis a passear pela casa. Grande coisa! A minha prima Genoveva também assistiu a fenómenos semelhantes: começou a ouvir ruídos inusitados às seis da manhã, levantou-se para averiguar a origem e, quando deu por ela, estava amarradinha a uma cadeira e amordaçada, a ver passar todos os bens que tinha acumulado em casa. Mas não foram os espíritos, não, foram os irmãos Gadunhas, acabadinhos de sair da prisão do Linhó. Quando eu tinha dez anos, talvez por ler muitos livros, também imaginava imensas cenas dignas de um filme: pardais a falarem comigo, Deus a olhar comovido para mim, um ladrão debaixo da minha cama, o conde Drácula a entrar pela janela para me sugar o sangue, as nuvens a perseguirem-me pelo céu transformadas em lobos, as meninas da minha aldeia a levantarem a saia e a dizerem que o pipi delas era meu para toda a vida… Mas sempre que eu contei isto a alguém não me deram importância. Felizes foram as crianças americanas e os pastorinhos de Fátima!
O seu guia espiritual, por aquilo que vejo no facebook, deve ser o Alan Kardec, que na verdade não tinha este nome mas se chamava Cavalo de Pedra, tudo junto e em grego. Um francês de Lyon que não tem adeptos no seu país mas é idolatrado por milhões no Brasil. Sempre pensei que existia um conluio mascarado entre o Vaticano e o Kardec e alguns indícios começam a ser muito fortes. Dou aqui um exemplo: o atual papa chama-se Francisco e o líder kardecista mais importante do mundo, também, foi o Chico Xavier, um homem de Minas Gerais que tomava o pequeno-almoço a tratar de negócios com centenas de espíritos.
Devo dizer, no entanto, que ainda não entendi quem é o IKEA. Pelo que li no seu facebook, que o senhor não assume porque quer continuar a enganar as pessoas, é o Infinito Krill Espiritual do Amor. Uma espécie de analogia com o alimento básico dos mares e das grandes criaturas. O krill espiritual prolifera no mundo, seduz os homens de boa vontade e aperfeiçoa-lhes a alma para eles se integrarem no absoluto. No entanto, na mensagem ameaçadora que me dirigiu fala dele como um chefe alien, que comanda os ellogs para fazerem javardice com os humanos e procriarem. Isso já não é propriamente kardecista. Tenha cuidado! Por esse andar vai ter de se esconder do Papa e do Chico Xavier (do espírito, claro, porque o desgraçado faleceu).

Sabe, ando aqui a pensar que talvez o senhor não seja padre nem kardecista, talvez seja apenas maluco e assassino. Por isso baralha os nomes! Falou comigo a dizer que tenho premonições, mas devia estar a pensar noutra pessoa, talvez num dos seus apaniguados, como o Davoud, o iraniano que afinal é português nascido em França. Eu não sou o Davoud, sou o Francisco, o amigo do Silveira, e espero que o Bispo descubra tudo aquilo que você anda a fazer e o excomungue, enviando-o para os quintos do inferno.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

30 - EVANGELHO SEGUNDO O FACEBOOK


     «Naquele tempo, IKEA desceu à terra e espantou-se de que o animal mais promissor fosse, ainda, um ser tão incipiente e tacanho. Em verdade, verdade vos digo que esse animal tinha já desenvolvido um polegar oponível aos outros dedos, e caminhava já quase erecto, embora muito curvado; em contrapartida, a sua agressividade mostrava-se demasiado primitiva.

»IKEA e seus companheiros, os ellog, eram poucos. Poucos, poucos, verdadeiramente. Pior do que isto, entre eles não havia fêmeas. As suas fêmeas tinham sido exterminadas na mais odiosa guerra de todo o tempo. Por essa razão, os poucos machos que restavam, comandados por IKEA, entravam no planeta terra em busca de fêmeas de anatomia análoga, com as quais pudessem cruzar-se, de forma a que a espécie ellog não desaparecesse.

»IKEA olhou os hominídeos, e não se agradou deles. Os seus companheiros olharam as fêmeas hominídeas, e sentiram repulsa. Imaginaram o que seria praticar o coito com aquelas fêmeas, hirsutas, encurvadas, incapazes de linguagem que não fosse de urros e gritos, e repugnaram-se. Todavia, não havia outro caminha para os ellog. O sacrifício seria a única solução.

»O primeiro fruto do seu plano, a primeira criatura híbrida, foi, pois, Adão. Descendente de um elogg e de uma hominídea.
»Em breve, a terra acabou sendo povoado e dominado por uma nova espécie, os humanos, espécie inteligente, maldosa, exploradora, transformadora, sensível e brutal, melancólica, irritadiça e criativa.

»IKEA e sua corte deixaram a prole, e regressaram a casa. Mas eis que os humanos esqueceram a História da sua criação e acreditaram em deuses e demónios, até que decidiram adorar um Deus Único, lhe ergueram templos e, em nome das religiões que fundavam, e de versões opostas desse Deus, se dedicaram alegremente à destruição uns dos outros, das outras espécies e da própria terra que habitavam.

»O Grande IKEA tudo isto ouviu e tudo isto soube. O Grande IKEA de tudo isto se desagradou, por tudo isto se impacientou, e contra tudo isto veio construindo um exército, que, no dia profetizado, destruirá os maus e os idiotas, os malfeitores e os indivíduos com aparelho nos dentes.

»Apressai-vos, Irmãos, apressai-vos. O tempo que Vos resta é mínimo. Purificai as mãos, libertai-vos do que vos pesa, despi-vos de trapos inúteis, telemóveis, toalhas de rosto, cremes de mãos, aparelhos dos dentes, cantai nas ruas Hossanas ao Grande IKEA. Em verdade, verdade vos digo, Irmãos: quem não se tiver preparado por dentro e por fora para a vinda do Grande IKEA, será dizimado, esborrachado como uma lagarta, reduzido a pó.»

O Chefe Abrantes, estupefacto, acabou de ler o extenso texto na página do Padre, e sacudiu tristemente a cabeça.
«O homem é doido, nomeadamente», disse para os seus botões.
Pareceu-lhe que um dos botões lhe respondia - a não ser que ele próprio, nomeadamente, também não estivesse muito bem da sua cabeça.

sábado, 29 de abril de 2017

29 - O IKEA, NOMEADAMENTE


ABRANTES: Seja razoável, senhor padre, nomeadamente. Já não sei por onde investigar. Tem de me dar alguma pista, o senhor que fala, nomeadamente, dos seus contactos privilegiados.
PADRE: Desculpe-me, chefe, mas, nomeadamente... perdão, quero dizer, não me disperso com bagatelas, não tenho tempo.
ABRANTES: Bagatelas, padre?! Nomeadamente?! Nomeadamente?! Estamos a falar dos crimes que têm, nomeadamente, sido perpetrados neste curto...?
PADRE: Nada se compara com que o que está para vir.
ABRANTES: Então, nomeadamente, o senhor reconhece que tem informação. Chama-se, nomeadamente, obstrução à justiça, padre, aquilo que, nomeadamente...
PADRE: Estou concentrado. Só tenho espírito para o Grande IKEA.
ABRANTES: Posso compreender. Também me interesso pelo assunto, mas...
PADRE: Interessa-se? O senhor sabe? É um confrade? É um dos nossos?
ABRANTES: Ah, sim, a minha mulher carrega-me, nomeadamente, muitas vezes para visitas.
PADRE: A sua mulher também? E visitas? Significa que já foram tele-transportados até ao local? E sem eu ter sabido? Mas eu sou o líder, senhor.
ABRANTES: Ai é? Nomeadamente, aprecio muito a beleza e o engenho, nomeadamente da coisa.
PADRE: Quero lá saber da beleza, homem. Não vai ficar pedra sobre pedra. Há-de ruir tudo!
ABRANTES: Ah, nomeadamente, padre, olhe que não, olhe que não. É tudo mais nomeadamente sólido e nomeadamente duradouro do que parece. Monta-se bem, e aguenta-se.
PADRE: Como?! 
ABRANTES: Toda a minha casa, aliás, está transformada, nomeadamente, naquilo a que os meus vizinhos, nomeadamente, chamam nomeadamente um templo ao IKEA.
PADRE: Um templo. Os senhores têm um templo? O senhor, o senhor... o senhor... o senhor...
ABRANTES: Mas voltando ao ponto. Nomeadamente. Estou a requisitá-lo, senhor padre, como adjunto na investigação.
PADRE: Adjunto? Afinal eu sou apenas adjunto? Não sou eu o líder, ou pelo menos, o representante, na terra, do Grande IKEA?
ABRANTES: Padre. Nomeadamente. Tenho de confessar que, às vezes, nomeadamente a maior parte das vezes, nomeadamente sempre, tenho alguma dificuldade em entendê-lo.

sexta-feira, 28 de abril de 2017

28 - UM PADRE COM CONTACTOS PRIVILEGIADOS


Meu caro senhor:

Tem-me o senhor enviado sucessivos e bizarros mails, em que oscila do insulto mais descarado, tal como quando decide chamar-me Padre Tortulho, às insinuações mais soezes, tais como quando refere o tipo de páginas por onde eu andaria a navegar na internet. Padre sério não tem ouvidos, meu caro. Nem boca para responder às provocações. Mas não satisfeito com as alfinetadas com que tem tentado insistentemente trazer-me ao diálogo, continua a querer que eu acredite nas suas premonições e na relação entre estas e uma série de episódios macabros. E a isso chamo assédio. Que quer afinal o senhor? Assustar-me? Comprometer-me? Que quer afinal de mim, criatura?

O certo é que as mortes brutais têm ocorrido e se multiplicam. E em relação a isso, alguma coisa terá de se fazer. O Chefe Abrantes anda completamente desesperado. Dizia-me ele, outro dia: «Não faz mal, nomeadamente, que haja um ou outro assassinatos (vendo bem, é o que me garante o emprego), mas faz mal que haja, nomeadamente, vários assassinatos sem que apareça, nomeadamente, um único suspeito.»

Eu tenho o meu próprio suspeito. Digo-o já. É o senhor. As suas alegadas premonições não são premonições, são planeamentos. Sob a forma de sonho, o senhor concebe a morte de alguém, depois trata de matar essa pessoa, num ritual perverso e tolo, a seguir acorda, fica muito admirado por estar em face de um crime que teria vagamente profetizado. Sente uma culpa inexplicável, e vem então confessar-se a mim, nesses seus mails que dizem mais sobre si do que sobre os desgraçados que vieram quinando, um após outro.

Mas uma coisa quero que saiba. A sua hora está próxima. Pensa que falo da polícia? Do Abrantes? Não me faça rir. Não sou um padre qualquer. Tornei-me mais poderoso do que o próprio Papa, Glória a mim. Eis-me líder da Confederação do Universo. Estamos em contacto com extra-terrestres. O meu espírito é guiado pelo Grande IKEA, esfomeado devorador de planetas hostis, que ergue o seu exército recrutando seres de todos os recantos do universo, e em breve chegará à Terra. Os que duvidam serão os primeiros a morrer. Ah! Rio-me das suas premonições, meu caro senhor, rio-me dos seus crimes e dos seus receios, rio-me de si e das velhas, rio-me do Chefe Abrantes e da sua incompetência. Aproxima-se o Apocalipse.

Eis a minha lista de pessoas que pagarão muito caro, e muito em breve:
1. O senhor será castigado - não tanto pelos seus crimes, mas pelos mails com que me tem vindo a atormentar.
2. Todos - e são muitos - os que me chamam maluco, troçam à socapa quando me ouvem falar de extra-terrestres, batem com o indicador na testa, como a indicar que eu tenho é macaquinhos no sótão.
3. Jovens com borbulhas. Não suporto jovens com borbulhas.
4. Pessoas com aparelhos nos dentes.
5. Aqueles que ao longo da minha vida me desconsideraram, me desprezaram, os funcionários das Finanças, principalmente aquela senhora que me mandou para o fim da fila com o pretexto de que eu chegara depois de todos os que já lá estavam.

Arrependei-vos. Arrependei-vos. Nada sobrará da vossa vaidade e da vossa arrogância.


quinta-feira, 27 de abril de 2017

27 - GALA, DALÍ, UMA GIRAFA E DENTADAS NO COCURUTO

Estou a escrever-lhe, padre Tortulho, movido pela indignação e pelo repúdio perante a morte do meu amigo Silveira. Não sei se ainda se considera sacerdote mas, se isso acontece, é porque perdeu completamente o sentido moral e utiliza a religião como um simples instrumento para concretizar os seus interesses. A avaliar pelas imagens e conversas que coloca na sua página secreta do facebook, esses interesses são abomináveis. Mas descanse que não tenciono denunciá-lo, quero é meter-me na minha vida. Mantenha-se longe de mim, se faz favor!
Um padre não pode ser extravagante, muito menos bizarro. Os artistas sim, mas o senhor nunca será um artista.
Salvador Dalí — esse sim — era um artista. Conheceu a Gala, a mulher da sua vida, e seduziu-a com uma criatividade difícil de igualar. Besuntou-se com sangue e deixou-o escorrer pelo corpo, até ficar seco. Utilizou excrementos de cabra e urina de bode velho para se perfumar. Não usou palavras, porque a voz não tem o poder do instinto, as frases, principalmente os poemas, são galhos secos disfarçados de flores e de troncos viçosos. Não, o pintor apenas riu, sentou-se junto dela e riu sem parar. E ela, que tivera tuberculose na infância, gostava de ser galada por poetas enfadonhos e petulantes, extasiou-se com esta transfiguração fáunica, esqueceu-se dos amantes e prendeu-se a um louco para o resto da vida.
Saiba o padre que o desmiolado génio catalão dos bigodes de arame desenhou um carro alegórico para o corso carnavalesco do Estoril em 1964. Tinha uma girafa metálica de pescoço flamejante, com cinco borboletas a esvoaçar. Quem o convenceu a participar no evento da Linha foi o senhor Tortulho, o seu avô — não o negue — que se deslocou propositadamente a Paris para o aliciar. Dizem que Dalí ficou tão fascinado com a narigueta do emissário do carnaval estorilense que acedeu ao pedido. Era uma penca mais exuberante do que a sua, com o tradicional formato de um cogumelo comestível.
O diabo do catalão narcísico, que se avaliava a si mesmo como génio, gostava tanto de girafas como de muletas. Alguns especialistas afirmam até que estas aparecem em todas as suas telas, embora não sejam facilmente percebidas. Umas e outras revelam as suas fantasias libidinosas da infância e a ostentação fálica da sua obra. Para mim, Dalí pode resumir-se no seguinte palavreado: em toda a paisagem crepuscular e estéril existem muletas que sustentam a desintegração e girafas onanistas que ejaculam purulências. Louco, padre, é o que ele era, e por ter consciência disso achava que não o era, como todos os doidos.
A noite passada vi o desenho que postou na sua página secreta do facebook, padre. Lá está a girafa de Dalí a dar dentadas no cocuruto de uma mulher esplendorosa, dotada de um pénis que se estende pela paisagem inóspita e termina em duas mãos que rezam. Compreendo muito bem o significado: há muita coisa a esconder porque a mente humana é um bordel e um açougueiro que estão no interior de uma igreja e por isso têm angústias.

Não me interessa o que aconteceu ao Silveira, mas estou de olho em si. Não se meta comigo, padre!    

terça-feira, 18 de abril de 2017

26 - O SONHO COMANDA A MORTE

Está a ver o que aconteceu, Padre? Parece que os meus sonhos comandam a morte. Porra! Estou farto disto! E o senhor continua sem dizer nada, encafuado nessa pretensiosa faceta serena e clerical. O caraças! Tem é medo daquilo que sabemos!
O Sidónio morreu, mas a alma não abandonou voluntariamente o corpo, alguém a arrancou, com selvajaria imperdoável. Mais uma vez o meu cérebro estrambólico visualizou, nas estrebuchações de Morfeu, o lastimável futuro de alguém, antecipou a realidade sórdida e talvez fatídica.
Dizem que foi um dia rotineiro para o amigo do Marcial e do Chefe Abrantes. Saiu do emprego que possui numa empresa municipal — sabemos como esses ofícios são conquistados — estava muito calor, pensou em tomar um banho mas, como sempre acontecia, sentiu-se angustiado e resolveu não o fazer. Conhecia muito bem a sabedoria da santa madre igreja romana, que durante mais de mil anos andou a afirmar que o “agá-doisó” abria os poros e deixava entrar as doenças, ora se ela o dizia é porque era verdade, hoje as pessoas vivem enganadas pelas multinacionais dos produtos higiénicos, lavam-se a toda a hora e depois gastam o dinheiro em medicamentos por causa das enfermidades, o Matacão já tinha visto o aspeto vários pescadores afogados no mar, a permanência na água deixava-lhes a pele com uma aparência abominável, por isso ele fez o que sempre fazia, humedeceu o polegar e o indicador da mão direita, retorceu o bigode e apontou-o para a têmpora, fez o mesmo do outro lado da cara e dirigiu-se calmamente para o café Safari.
A tasca é a mãe daquela gente toda, o padre sabe muito bem isso, fala-se muito no vício, no consumo exagerado de bebidas alcoólicas, mas a verdadeira dimensão das tabernórias é maternal, cada gargalo de garrafa é um retorno aos mamilos leitosos das mães, especialmente no caso dos homens. Até as conversas se centram compulsivamente no futebol, isto é, numa coisa redonda como o formato do seio materno.
À meia-noite, quando o bandulho do café Safari já tinha transferido quase tudo o que era de ingerir para as barrigas dos clientes — cervejas, aguardentes, vinho, sandes diversas, pastéis fritos e muito mais — o Sidónio resolveu ir deitar-se. Despediu-se do Marcial e dos outros e pôs-se a caminho. O álcool acumulado já transbordava do cérebro, chocalhava no alto da cabeça, comprimia os nervos óticos e acirrava tonturas, vómitos e tropeções.
— Eh! Vento norte! — Gritou um dos que ficaram, um fulano com cara de osga, que costumava barafustar com a dona do Safari por não ter negalhos, a melhor iguaria do mundo e mesmo do universo, feita na sua terra, Miranda do Corvo, com tripas de cabra aos pedacinhos a encher o bucho do mesmo animal.
O Matacão seguiu a sua viagem instável. Parecia ter uma atração irresistível pela exploração alternada das bermas. Tinha de passar por uma rua mal iluminada, a caminho do Cabreiro, e foi aí que o crime aconteceu. Por causa das eleições que se aproximam, os políticos que dirigem a Câmara Municipal resolveram concentrar todas as obras e mais algumas nas estradas do concelho e num tempo muito curto. Sabem que causam sérios transtornos aos condutores, pois estes para se deslocarem entre duas localidades contíguas chegam a ter de percorrer meia dúzia de desvios. Porém, os políticos não dão importância aos descontentamentos do presente, o povo esquece com rapidez e, quando vir o alcatrão viçoso a enegrecer as estradas e a deliciar os pneus e as suspensões, sacará entusiasticamente do seu voto para oferecer aos que o semearam.
Acontece que na zona mais escura da estrada pernoitavam algumas máquinas utilizadas nas obras de repavimentação, nomeadamente um cilindro de estrada, como disse depois o Chefe Abrantes. O que aconteceu ali, quando o Sidónio se aproximou, está longe de ser compreendido mas o certo é que, ao alvorecer, os transeuntes mais atentos tiveram a visão horrenda do seu corpo cilindrado pelo rolo compactador, que nomeadamente, segundo destacou o Chefe Abrantes, era da marca Sinomach. O facto de ser este o fabricante levou os espantosos neurónios malabaristas do nosso agente da autoridade a elaborarem a conjetura de que, longe se ser uma coincidência, isto podia manifestar alguma relação com a colossal penca do Sidónio, poderia mesmo ser o primeiro caso de um assassino em série de indivíduos narigudos.

Mas deixemos estas deambulações em torno do crime, o que me interessa é que, mais uma vez, os meus sonhos visualizaram o futuro, tiveram a premonição do homicídio, viram claramente vista a morte. Na noite anterior, durante a minha entrega a Morfeu, o Sidónio tinha-me aparecido feito em papa. Isto é horrível padre, começo a ficar seriamente cismático. Temos de ter muito cuidado! Parece que os meus sonhos comandam a morte.

sexta-feira, 14 de abril de 2017

25 - A QUEDA DE UM CORPO A FAZER AMOR EM POSIÇÃO CONVEXA


Ainda ninguém deu por mim mas chegou a hora de me apresentar e de tecer algumas considerações, que considero importantes, para esclarecer o último documento que divulguei e que falava da morte da Doroteia.
Até aqui limitei-me a publicar, de acordo com a sequência temporal, as mensagens trocadas entre aqueles que me parecem ter sido os principais intervenientes nos crimes que ocorreram nesta glamorosa vila. Agora, vou esclarecer algumas dúvidas que podem corroer a confiança dos leitores na lógica narrativa dos documentos selecionados.
Como é que a Doroteia caiu da mesa quando fazia sexo com o Matacão?
Esta foi a pergunta que, na altura, fez a inspectora Zé Pereira, a agente da polícia judiciária responsável pela investigação. Do que falei com o Chefe Abrantes, percebi que ela andou muito desconfiada, nomeadamente não acreditou na história, e encarquilhou nomeadamente a cabeça com as várias hipóteses em que magicou.
— Caro Chefe Abrantes — dizia ela — o Sidónio levou a falecida para uma cópula, em cima da mesa da sala, esperançado de que, no desconforto de uma superfície dura, ela não adormecesse durante o evento. Para que a senhora pudesse sentir a dureza do tampo teria de estar numa posição de missionário, se bem me entende, e por baixo dele, e seria muito difícil cair, mesmo que dormisse. Se estivesse por cima, não haveria acordo com o propósito, que era sofrer a rijeza da madeira, para além da outra, se bem me entende. Pode ser que a estratégia tenha mesmo funcionado e, depois do êxtase, tenham adormecido os dois e caído. Mas, cá para mim, o mais provável é que ele seja um assassino!
O Chefe Abrantes diz que a inspectora Zé Pereira era nomeadamente assim, muito dinâmica e radical nas suas crenças, teimosa como uma burra, nomeadamente. Formava uma crença logo nas primeiras impressões e não havia nada que a demovesse. Primeiro colocava o ponto final e depois explorava a restante pontuação.
A verdade é que a inspetora estava enganada. A Doroteia caiu e morreu porque era muito caprichosa nas posições do amor. Gostava de fazer sexo atravessada sobre o sommier baixo, com as costas já a descair e a nuca encostada ao chão. O Sidónio esparramava-se sobre ela, feito equilibrista, aguentando-se esforçadamente com as palmas das mãos no chão. Claro que, devido à altura da mesa, aquele posicionamento dos corpos era um convite irrecusável à desgraça.
Muito sofreu o Sidónio com o falecimento da amada. O Chefe Abrantes diz mesmo que ele até nomeadamente se amargurou.
Tinha vivido mais de dez anos a tentar satisfazê-la de todas as formas que sabia e inventava. Um dia, ouviu um historiador falar do rio Do Touro, um riacho que corre ali pelo sopé da serra de Sintra, por cima da Biscaia, e desagua numa enseada arenosa, utilizada na antiguidade como porto de colonos de Cartago. De noite sonhou que na origem daquele curso de água estivera um enorme touro cartaginês, de cobrição, tão pujante que as vacas fecundadas por ele não pariam bezerros mas sim elefantes. Convencido da realidade do seu devaneio noturno, encheu-se de fé, subiu as curvas e contracurvas do piso alcatroado, que parte da Malveira em direção ao vistoso casaria da Atalaia, e foi lavar-se repetidamente nas águas daquele ribeiro, para absorver a descomunal exuberância do bovídeo.
— Sou o touro cartaginês do meu amor, pois sou? — Perguntava ele à Doroteia.
— Sim, sim, e também o de Creta — respondia ela, que era muito mais erudita.

Numa dessas surtidas ritualistas e mágicas, o Matacão que, como sabemos, utilizava o bico do seu enorme nariz para fazer pontaria às distâncias, foi mordido, na penca, por uma abelha. Na aflição, distraiu-se, perdeu a noção do espaço, desequilibrou-se no atalho íngreme, foi sugado pela gravidade e encetou a dar tombos e mortais até ficar todo partidinho e completamente arredado do viço do touro cartaginês. Nunca mais parou de coxear.

terça-feira, 11 de abril de 2017

24 - O MEU DEDO É A CARA DA DOROTEIA

Estou farto da porcaria da minha vida, padre! Desde que o nosso amigo Silveira apareceu amortalhado em sangue, com a ponta do bico de uma garça-real espetada por baixo do caroço adâmico, ando mais enervado do que uma ninfomaníaca sem penetração. Desculpe esta linguagem agreste, mas a verdade é que o senhor não me dá qualquer apoio, e olhe que ambos sabemos que o devia fazer, pois se eu quiser dar ao serrote tenho muito para contar. Dedica a porcaria da sua existência a fazer macaquices nas missinhas, como se acreditasse, de facto, nessas coisas. A verdade, senhor padre, é que me apetece matar toda a gente com quem sonho nas minhas noites de pesadelo.
 Ontem realizei um filme de suspense enquanto me debatia nos abraços maliciosos de Morfeu e senti crescer em mim uma vontade compulsiva de esfacelar o mísero corpo do Sidónio Matacão, de lhe esborrachar aquela bicanca vermelhusca e catosa, de lhe esmigalhar o crânio e de transformá-lo, sem dó nem piedade, numa papa irreconhecível. O sacana sempre mereceu a morte, não tenho dúvidas, a existência dele é a perda de uma boa oportunidade para uma vida decente, e olhe que não digo isto apenas por vê-lo enfardar sandes de presunto, triturar chamuças, amassar pastéis de bacalhau e sorver minis e copos de vinho carrascão no café Safari. O que mais me irrita no amigo do Silveira é o facto de aquele animal estar convencido de que a cabeça do seu segundo dedo do pé direito é a cara da sua amada Doroteia, uma mulher anafada cujas bochechas parecem querer libertar-se da prisão da cara e cair em direção ao centro da Terra. Sentado na esplanada, tira o sapato e a meia e teima em mostrar o objeto da sua fixação, a maldita e exasperante falangeta, perante os protestos desesperados dos narizes presentes.
O Sidónio apenas gosta de mulheres bem fornecidas de tecido adiposo, é obcecado pela redondice feminina, talvez para contrastar com a angulosidade da sua penca hipertrófica, uma herança de família, pois dizem que o seu avô, um industrial de mármores da zona de Pêro Pinheiro, utilizava o bico da narigueta para perspectivar os cortes da pedra. A Doroteia foi o grande amor da vida do Matacão, mas tinha uma característica fisiológica que acabou por lhe acarretar consequências trágicas: adormecia subitamente em qualquer situação e, se não tivesse amparo, caía redonda, embora, felizmente, a queda fosse sempre amortecida pelas suas carnes moles. O grande objetivo da moça era ter um filho do Sidónio e chamar-lhe Fernando Manuel, nunca ninguém percebeu porquê. Engravidar não era fácil, porque adormecia sistematicamente a meio do regalo lúbrico e o Matacão acabava por abandonar a cópula, não pelo facto de a parceira perder a consciência e deixar de retribuir mas apenas por não conseguir dominar a inércia daquele corpo colossal e morto. Um dia decidiram experimentar fazer amor sobre a mesa da sala, pensando que o desconforto da dureza do tampo lenhoso seria um entrave às investidas do sono. A verdade é que, mesmo assim, ela não só adormeceu como também caiu, bateu com a têmpora no mosaico do chão e faleceu sem dar por isso.

Agora o nosso Sidónio anda cada vez mais maluco! Além de ver a cara da Doroteia na falangeta também afirma que fala com deus, que este se chama Fernando Manuel e que lhe disse quem são os responsáveis pelos execráveis homicídios que têm contaminado esta terra. Assim, onde é que ele vai parar? Temos de ter muito cuidado com ele! Não acha, padre?