sábado, 29 de abril de 2017

29 - O IKEA, NOMEADAMENTE


ABRANTES: Seja razoável, senhor padre, nomeadamente. Já não sei por onde investigar. Tem de me dar alguma pista, o senhor que fala, nomeadamente, dos seus contactos privilegiados.
PADRE: Desculpe-me, chefe, mas, nomeadamente... perdão, quero dizer, não me disperso com bagatelas, não tenho tempo.
ABRANTES: Bagatelas, padre?! Nomeadamente?! Nomeadamente?! Estamos a falar dos crimes que têm, nomeadamente, sido perpetrados neste curto...?
PADRE: Nada se compara com que o que está para vir.
ABRANTES: Então, nomeadamente, o senhor reconhece que tem informação. Chama-se, nomeadamente, obstrução à justiça, padre, aquilo que, nomeadamente...
PADRE: Estou concentrado. Só tenho espírito para o Grande IKEA.
ABRANTES: Posso compreender. Também me interesso pelo assunto, mas...
PADRE: Interessa-se? O senhor sabe? É um confrade? É um dos nossos?
ABRANTES: Ah, sim, a minha mulher carrega-me, nomeadamente, muitas vezes para visitas.
PADRE: A sua mulher também? E visitas? Significa que já foram tele-transportados até ao local? E sem eu ter sabido? Mas eu sou o líder, senhor.
ABRANTES: Ai é? Nomeadamente, aprecio muito a beleza e o engenho, nomeadamente da coisa.
PADRE: Quero lá saber da beleza, homem. Não vai ficar pedra sobre pedra. Há-de ruir tudo!
ABRANTES: Ah, nomeadamente, padre, olhe que não, olhe que não. É tudo mais nomeadamente sólido e nomeadamente duradouro do que parece. Monta-se bem, e aguenta-se.
PADRE: Como?! 
ABRANTES: Toda a minha casa, aliás, está transformada, nomeadamente, naquilo a que os meus vizinhos, nomeadamente, chamam nomeadamente um templo ao IKEA.
PADRE: Um templo. Os senhores têm um templo? O senhor, o senhor... o senhor... o senhor...
ABRANTES: Mas voltando ao ponto. Nomeadamente. Estou a requisitá-lo, senhor padre, como adjunto na investigação.
PADRE: Adjunto? Afinal eu sou apenas adjunto? Não sou eu o líder, ou pelo menos, o representante, na terra, do Grande IKEA?
ABRANTES: Padre. Nomeadamente. Tenho de confessar que, às vezes, nomeadamente a maior parte das vezes, nomeadamente sempre, tenho alguma dificuldade em entendê-lo.

sexta-feira, 28 de abril de 2017

28 - UM PADRE COM CONTACTOS PRIVILEGIADOS


Meu caro senhor:

Tem-me o senhor enviado sucessivos e bizarros mails, em que oscila do insulto mais descarado, tal como quando decide chamar-me Padre Tortulho, às insinuações mais soezes, tais como quando refere o tipo de páginas por onde eu andaria a navegar na internet. Padre sério não tem ouvidos, meu caro. Nem boca para responder às provocações. Mas não satisfeito com as alfinetadas com que tem tentado insistentemente trazer-me ao diálogo, continua a querer que eu acredite nas suas premonições e na relação entre estas e uma série de episódios macabros. E a isso chamo assédio. Que quer afinal o senhor? Assustar-me? Comprometer-me? Que quer afinal de mim, criatura?

O certo é que as mortes brutais têm ocorrido e se multiplicam. E em relação a isso, alguma coisa terá de se fazer. O Chefe Abrantes anda completamente desesperado. Dizia-me ele, outro dia: «Não faz mal, nomeadamente, que haja um ou outro assassinatos (vendo bem, é o que me garante o emprego), mas faz mal que haja, nomeadamente, vários assassinatos sem que apareça, nomeadamente, um único suspeito.»

Eu tenho o meu próprio suspeito. Digo-o já. É o senhor. As suas alegadas premonições não são premonições, são planeamentos. Sob a forma de sonho, o senhor concebe a morte de alguém, depois trata de matar essa pessoa, num ritual perverso e tolo, a seguir acorda, fica muito admirado por estar em face de um crime que teria vagamente profetizado. Sente uma culpa inexplicável, e vem então confessar-se a mim, nesses seus mails que dizem mais sobre si do que sobre os desgraçados que vieram quinando, um após outro.

Mas uma coisa quero que saiba. A sua hora está próxima. Pensa que falo da polícia? Do Abrantes? Não me faça rir. Não sou um padre qualquer. Tornei-me mais poderoso do que o próprio Papa, Glória a mim. Eis-me líder da Confederação do Universo. Estamos em contacto com extra-terrestres. O meu espírito é guiado pelo Grande IKEA, esfomeado devorador de planetas hostis, que ergue o seu exército recrutando seres de todos os recantos do universo, e em breve chegará à Terra. Os que duvidam serão os primeiros a morrer. Ah! Rio-me das suas premonições, meu caro senhor, rio-me dos seus crimes e dos seus receios, rio-me de si e das velhas, rio-me do Chefe Abrantes e da sua incompetência. Aproxima-se o Apocalipse.

Eis a minha lista de pessoas que pagarão muito caro, e muito em breve:
1. O senhor será castigado - não tanto pelos seus crimes, mas pelos mails com que me tem vindo a atormentar.
2. Todos - e são muitos - os que me chamam maluco, troçam à socapa quando me ouvem falar de extra-terrestres, batem com o indicador na testa, como a indicar que eu tenho é macaquinhos no sótão.
3. Jovens com borbulhas. Não suporto jovens com borbulhas.
4. Pessoas com aparelhos nos dentes.
5. Aqueles que ao longo da minha vida me desconsideraram, me desprezaram, os funcionários das Finanças, principalmente aquela senhora que me mandou para o fim da fila com o pretexto de que eu chegara depois de todos os que já lá estavam.

Arrependei-vos. Arrependei-vos. Nada sobrará da vossa vaidade e da vossa arrogância.


quinta-feira, 27 de abril de 2017

27 - GALA, DALÍ, UMA GIRAFA E DENTADAS NO COCURUTO

Estou a escrever-lhe, padre Tortulho, movido pela indignação e pelo repúdio perante a morte do meu amigo Silveira. Não sei se ainda se considera sacerdote mas, se isso acontece, é porque perdeu completamente o sentido moral e utiliza a religião como um simples instrumento para concretizar os seus interesses. A avaliar pelas imagens e conversas que coloca na sua página secreta do facebook, esses interesses são abomináveis. Mas descanse que não tenciono denunciá-lo, quero é meter-me na minha vida. Mantenha-se longe de mim, se faz favor!
Um padre não pode ser extravagante, muito menos bizarro. Os artistas sim, mas o senhor nunca será um artista.
Salvador Dalí — esse sim — era um artista. Conheceu a Gala, a mulher da sua vida, e seduziu-a com uma criatividade difícil de igualar. Besuntou-se com sangue e deixou-o escorrer pelo corpo, até ficar seco. Utilizou excrementos de cabra e urina de bode velho para se perfumar. Não usou palavras, porque a voz não tem o poder do instinto, as frases, principalmente os poemas, são galhos secos disfarçados de flores e de troncos viçosos. Não, o pintor apenas riu, sentou-se junto dela e riu sem parar. E ela, que tivera tuberculose na infância, gostava de ser galada por poetas enfadonhos e petulantes, extasiou-se com esta transfiguração fáunica, esqueceu-se dos amantes e prendeu-se a um louco para o resto da vida.
Saiba o padre que o desmiolado génio catalão dos bigodes de arame desenhou um carro alegórico para o corso carnavalesco do Estoril em 1964. Tinha uma girafa metálica de pescoço flamejante, com cinco borboletas a esvoaçar. Quem o convenceu a participar no evento da Linha foi o senhor Tortulho, o seu avô — não o negue — que se deslocou propositadamente a Paris para o aliciar. Dizem que Dalí ficou tão fascinado com a narigueta do emissário do carnaval estorilense que acedeu ao pedido. Era uma penca mais exuberante do que a sua, com o tradicional formato de um cogumelo comestível.
O diabo do catalão narcísico, que se avaliava a si mesmo como génio, gostava tanto de girafas como de muletas. Alguns especialistas afirmam até que estas aparecem em todas as suas telas, embora não sejam facilmente percebidas. Umas e outras revelam as suas fantasias libidinosas da infância e a ostentação fálica da sua obra. Para mim, Dalí pode resumir-se no seguinte palavreado: em toda a paisagem crepuscular e estéril existem muletas que sustentam a desintegração e girafas onanistas que ejaculam purulências. Louco, padre, é o que ele era, e por ter consciência disso achava que não o era, como todos os doidos.
A noite passada vi o desenho que postou na sua página secreta do facebook, padre. Lá está a girafa de Dalí a dar dentadas no cocuruto de uma mulher esplendorosa, dotada de um pénis que se estende pela paisagem inóspita e termina em duas mãos que rezam. Compreendo muito bem o significado: há muita coisa a esconder porque a mente humana é um bordel e um açougueiro que estão no interior de uma igreja e por isso têm angústias.

Não me interessa o que aconteceu ao Silveira, mas estou de olho em si. Não se meta comigo, padre!    

terça-feira, 18 de abril de 2017

26 - O SONHO COMANDA A MORTE

Está a ver o que aconteceu, Padre? Parece que os meus sonhos comandam a morte. Porra! Estou farto disto! E o senhor continua sem dizer nada, encafuado nessa pretensiosa faceta serena e clerical. O caraças! Tem é medo daquilo que sabemos!
O Sidónio morreu, mas a alma não abandonou voluntariamente o corpo, alguém a arrancou, com selvajaria imperdoável. Mais uma vez o meu cérebro estrambólico visualizou, nas estrebuchações de Morfeu, o lastimável futuro de alguém, antecipou a realidade sórdida e talvez fatídica.
Dizem que foi um dia rotineiro para o amigo do Marcial e do Chefe Abrantes. Saiu do emprego que possui numa empresa municipal — sabemos como esses ofícios são conquistados — estava muito calor, pensou em tomar um banho mas, como sempre acontecia, sentiu-se angustiado e resolveu não o fazer. Conhecia muito bem a sabedoria da santa madre igreja romana, que durante mais de mil anos andou a afirmar que o “agá-doisó” abria os poros e deixava entrar as doenças, ora se ela o dizia é porque era verdade, hoje as pessoas vivem enganadas pelas multinacionais dos produtos higiénicos, lavam-se a toda a hora e depois gastam o dinheiro em medicamentos por causa das enfermidades, o Matacão já tinha visto o aspeto vários pescadores afogados no mar, a permanência na água deixava-lhes a pele com uma aparência abominável, por isso ele fez o que sempre fazia, humedeceu o polegar e o indicador da mão direita, retorceu o bigode e apontou-o para a têmpora, fez o mesmo do outro lado da cara e dirigiu-se calmamente para o café Safari.
A tasca é a mãe daquela gente toda, o padre sabe muito bem isso, fala-se muito no vício, no consumo exagerado de bebidas alcoólicas, mas a verdadeira dimensão das tabernórias é maternal, cada gargalo de garrafa é um retorno aos mamilos leitosos das mães, especialmente no caso dos homens. Até as conversas se centram compulsivamente no futebol, isto é, numa coisa redonda como o formato do seio materno.
À meia-noite, quando o bandulho do café Safari já tinha transferido quase tudo o que era de ingerir para as barrigas dos clientes — cervejas, aguardentes, vinho, sandes diversas, pastéis fritos e muito mais — o Sidónio resolveu ir deitar-se. Despediu-se do Marcial e dos outros e pôs-se a caminho. O álcool acumulado já transbordava do cérebro, chocalhava no alto da cabeça, comprimia os nervos óticos e acirrava tonturas, vómitos e tropeções.
— Eh! Vento norte! — Gritou um dos que ficaram, um fulano com cara de osga, que costumava barafustar com a dona do Safari por não ter negalhos, a melhor iguaria do mundo e mesmo do universo, feita na sua terra, Miranda do Corvo, com tripas de cabra aos pedacinhos a encher o bucho do mesmo animal.
O Matacão seguiu a sua viagem instável. Parecia ter uma atração irresistível pela exploração alternada das bermas. Tinha de passar por uma rua mal iluminada, a caminho do Cabreiro, e foi aí que o crime aconteceu. Por causa das eleições que se aproximam, os políticos que dirigem a Câmara Municipal resolveram concentrar todas as obras e mais algumas nas estradas do concelho e num tempo muito curto. Sabem que causam sérios transtornos aos condutores, pois estes para se deslocarem entre duas localidades contíguas chegam a ter de percorrer meia dúzia de desvios. Porém, os políticos não dão importância aos descontentamentos do presente, o povo esquece com rapidez e, quando vir o alcatrão viçoso a enegrecer as estradas e a deliciar os pneus e as suspensões, sacará entusiasticamente do seu voto para oferecer aos que o semearam.
Acontece que na zona mais escura da estrada pernoitavam algumas máquinas utilizadas nas obras de repavimentação, nomeadamente um cilindro de estrada, como disse depois o Chefe Abrantes. O que aconteceu ali, quando o Sidónio se aproximou, está longe de ser compreendido mas o certo é que, ao alvorecer, os transeuntes mais atentos tiveram a visão horrenda do seu corpo cilindrado pelo rolo compactador, que nomeadamente, segundo destacou o Chefe Abrantes, era da marca Sinomach. O facto de ser este o fabricante levou os espantosos neurónios malabaristas do nosso agente da autoridade a elaborarem a conjetura de que, longe se ser uma coincidência, isto podia manifestar alguma relação com a colossal penca do Sidónio, poderia mesmo ser o primeiro caso de um assassino em série de indivíduos narigudos.

Mas deixemos estas deambulações em torno do crime, o que me interessa é que, mais uma vez, os meus sonhos visualizaram o futuro, tiveram a premonição do homicídio, viram claramente vista a morte. Na noite anterior, durante a minha entrega a Morfeu, o Sidónio tinha-me aparecido feito em papa. Isto é horrível padre, começo a ficar seriamente cismático. Temos de ter muito cuidado! Parece que os meus sonhos comandam a morte.

sexta-feira, 14 de abril de 2017

25 - A QUEDA DE UM CORPO A FAZER AMOR EM POSIÇÃO CONVEXA


Ainda ninguém deu por mim mas chegou a hora de me apresentar e de tecer algumas considerações, que considero importantes, para esclarecer o último documento que divulguei e que falava da morte da Doroteia.
Até aqui limitei-me a publicar, de acordo com a sequência temporal, as mensagens trocadas entre aqueles que me parecem ter sido os principais intervenientes nos crimes que ocorreram nesta glamorosa vila. Agora, vou esclarecer algumas dúvidas que podem corroer a confiança dos leitores na lógica narrativa dos documentos selecionados.
Como é que a Doroteia caiu da mesa quando fazia sexo com o Matacão?
Esta foi a pergunta que, na altura, fez a inspectora Zé Pereira, a agente da polícia judiciária responsável pela investigação. Do que falei com o Chefe Abrantes, percebi que ela andou muito desconfiada, nomeadamente não acreditou na história, e encarquilhou nomeadamente a cabeça com as várias hipóteses em que magicou.
— Caro Chefe Abrantes — dizia ela — o Sidónio levou a falecida para uma cópula, em cima da mesa da sala, esperançado de que, no desconforto de uma superfície dura, ela não adormecesse durante o evento. Para que a senhora pudesse sentir a dureza do tampo teria de estar numa posição de missionário, se bem me entende, e por baixo dele, e seria muito difícil cair, mesmo que dormisse. Se estivesse por cima, não haveria acordo com o propósito, que era sofrer a rijeza da madeira, para além da outra, se bem me entende. Pode ser que a estratégia tenha mesmo funcionado e, depois do êxtase, tenham adormecido os dois e caído. Mas, cá para mim, o mais provável é que ele seja um assassino!
O Chefe Abrantes diz que a inspectora Zé Pereira era nomeadamente assim, muito dinâmica e radical nas suas crenças, teimosa como uma burra, nomeadamente. Formava uma crença logo nas primeiras impressões e não havia nada que a demovesse. Primeiro colocava o ponto final e depois explorava a restante pontuação.
A verdade é que a inspetora estava enganada. A Doroteia caiu e morreu porque era muito caprichosa nas posições do amor. Gostava de fazer sexo atravessada sobre o sommier baixo, com as costas já a descair e a nuca encostada ao chão. O Sidónio esparramava-se sobre ela, feito equilibrista, aguentando-se esforçadamente com as palmas das mãos no chão. Claro que, devido à altura da mesa, aquele posicionamento dos corpos era um convite irrecusável à desgraça.
Muito sofreu o Sidónio com o falecimento da amada. O Chefe Abrantes diz mesmo que ele até nomeadamente se amargurou.
Tinha vivido mais de dez anos a tentar satisfazê-la de todas as formas que sabia e inventava. Um dia, ouviu um historiador falar do rio Do Touro, um riacho que corre ali pelo sopé da serra de Sintra, por cima da Biscaia, e desagua numa enseada arenosa, utilizada na antiguidade como porto de colonos de Cartago. De noite sonhou que na origem daquele curso de água estivera um enorme touro cartaginês, de cobrição, tão pujante que as vacas fecundadas por ele não pariam bezerros mas sim elefantes. Convencido da realidade do seu devaneio noturno, encheu-se de fé, subiu as curvas e contracurvas do piso alcatroado, que parte da Malveira em direção ao vistoso casaria da Atalaia, e foi lavar-se repetidamente nas águas daquele ribeiro, para absorver a descomunal exuberância do bovídeo.
— Sou o touro cartaginês do meu amor, pois sou? — Perguntava ele à Doroteia.
— Sim, sim, e também o de Creta — respondia ela, que era muito mais erudita.

Numa dessas surtidas ritualistas e mágicas, o Matacão que, como sabemos, utilizava o bico do seu enorme nariz para fazer pontaria às distâncias, foi mordido, na penca, por uma abelha. Na aflição, distraiu-se, perdeu a noção do espaço, desequilibrou-se no atalho íngreme, foi sugado pela gravidade e encetou a dar tombos e mortais até ficar todo partidinho e completamente arredado do viço do touro cartaginês. Nunca mais parou de coxear.

terça-feira, 11 de abril de 2017

24 - O MEU DEDO É A CARA DA DOROTEIA

Estou farto da porcaria da minha vida, padre! Desde que o nosso amigo Silveira apareceu amortalhado em sangue, com a ponta do bico de uma garça-real espetada por baixo do caroço adâmico, ando mais enervado do que uma ninfomaníaca sem penetração. Desculpe esta linguagem agreste, mas a verdade é que o senhor não me dá qualquer apoio, e olhe que ambos sabemos que o devia fazer, pois se eu quiser dar ao serrote tenho muito para contar. Dedica a porcaria da sua existência a fazer macaquices nas missinhas, como se acreditasse, de facto, nessas coisas. A verdade, senhor padre, é que me apetece matar toda a gente com quem sonho nas minhas noites de pesadelo.
 Ontem realizei um filme de suspense enquanto me debatia nos abraços maliciosos de Morfeu e senti crescer em mim uma vontade compulsiva de esfacelar o mísero corpo do Sidónio Matacão, de lhe esborrachar aquela bicanca vermelhusca e catosa, de lhe esmigalhar o crânio e de transformá-lo, sem dó nem piedade, numa papa irreconhecível. O sacana sempre mereceu a morte, não tenho dúvidas, a existência dele é a perda de uma boa oportunidade para uma vida decente, e olhe que não digo isto apenas por vê-lo enfardar sandes de presunto, triturar chamuças, amassar pastéis de bacalhau e sorver minis e copos de vinho carrascão no café Safari. O que mais me irrita no amigo do Silveira é o facto de aquele animal estar convencido de que a cabeça do seu segundo dedo do pé direito é a cara da sua amada Doroteia, uma mulher anafada cujas bochechas parecem querer libertar-se da prisão da cara e cair em direção ao centro da Terra. Sentado na esplanada, tira o sapato e a meia e teima em mostrar o objeto da sua fixação, a maldita e exasperante falangeta, perante os protestos desesperados dos narizes presentes.
O Sidónio apenas gosta de mulheres bem fornecidas de tecido adiposo, é obcecado pela redondice feminina, talvez para contrastar com a angulosidade da sua penca hipertrófica, uma herança de família, pois dizem que o seu avô, um industrial de mármores da zona de Pêro Pinheiro, utilizava o bico da narigueta para perspectivar os cortes da pedra. A Doroteia foi o grande amor da vida do Matacão, mas tinha uma característica fisiológica que acabou por lhe acarretar consequências trágicas: adormecia subitamente em qualquer situação e, se não tivesse amparo, caía redonda, embora, felizmente, a queda fosse sempre amortecida pelas suas carnes moles. O grande objetivo da moça era ter um filho do Sidónio e chamar-lhe Fernando Manuel, nunca ninguém percebeu porquê. Engravidar não era fácil, porque adormecia sistematicamente a meio do regalo lúbrico e o Matacão acabava por abandonar a cópula, não pelo facto de a parceira perder a consciência e deixar de retribuir mas apenas por não conseguir dominar a inércia daquele corpo colossal e morto. Um dia decidiram experimentar fazer amor sobre a mesa da sala, pensando que o desconforto da dureza do tampo lenhoso seria um entrave às investidas do sono. A verdade é que, mesmo assim, ela não só adormeceu como também caiu, bateu com a têmpora no mosaico do chão e faleceu sem dar por isso.

Agora o nosso Sidónio anda cada vez mais maluco! Além de ver a cara da Doroteia na falangeta também afirma que fala com deus, que este se chama Fernando Manuel e que lhe disse quem são os responsáveis pelos execráveis homicídios que têm contaminado esta terra. Assim, onde é que ele vai parar? Temos de ter muito cuidado com ele! Não acha, padre?