terça-feira, 11 de abril de 2017

24 - O MEU DEDO É A CARA DA DOROTEIA

Estou farto da porcaria da minha vida, padre! Desde que o nosso amigo Silveira apareceu amortalhado em sangue, com a ponta do bico de uma garça-real espetada por baixo do caroço adâmico, ando mais enervado do que uma ninfomaníaca sem penetração. Desculpe esta linguagem agreste, mas a verdade é que o senhor não me dá qualquer apoio, e olhe que ambos sabemos que o devia fazer, pois se eu quiser dar ao serrote tenho muito para contar. Dedica a porcaria da sua existência a fazer macaquices nas missinhas, como se acreditasse, de facto, nessas coisas. A verdade, senhor padre, é que me apetece matar toda a gente com quem sonho nas minhas noites de pesadelo.
 Ontem realizei um filme de suspense enquanto me debatia nos abraços maliciosos de Morfeu e senti crescer em mim uma vontade compulsiva de esfacelar o mísero corpo do Sidónio Matacão, de lhe esborrachar aquela bicanca vermelhusca e catosa, de lhe esmigalhar o crânio e de transformá-lo, sem dó nem piedade, numa papa irreconhecível. O sacana sempre mereceu a morte, não tenho dúvidas, a existência dele é a perda de uma boa oportunidade para uma vida decente, e olhe que não digo isto apenas por vê-lo enfardar sandes de presunto, triturar chamuças, amassar pastéis de bacalhau e sorver minis e copos de vinho carrascão no café Safari. O que mais me irrita no amigo do Silveira é o facto de aquele animal estar convencido de que a cabeça do seu segundo dedo do pé direito é a cara da sua amada Doroteia, uma mulher anafada cujas bochechas parecem querer libertar-se da prisão da cara e cair em direção ao centro da Terra. Sentado na esplanada, tira o sapato e a meia e teima em mostrar o objeto da sua fixação, a maldita e exasperante falangeta, perante os protestos desesperados dos narizes presentes.
O Sidónio apenas gosta de mulheres bem fornecidas de tecido adiposo, é obcecado pela redondice feminina, talvez para contrastar com a angulosidade da sua penca hipertrófica, uma herança de família, pois dizem que o seu avô, um industrial de mármores da zona de Pêro Pinheiro, utilizava o bico da narigueta para perspectivar os cortes da pedra. A Doroteia foi o grande amor da vida do Matacão, mas tinha uma característica fisiológica que acabou por lhe acarretar consequências trágicas: adormecia subitamente em qualquer situação e, se não tivesse amparo, caía redonda, embora, felizmente, a queda fosse sempre amortecida pelas suas carnes moles. O grande objetivo da moça era ter um filho do Sidónio e chamar-lhe Fernando Manuel, nunca ninguém percebeu porquê. Engravidar não era fácil, porque adormecia sistematicamente a meio do regalo lúbrico e o Matacão acabava por abandonar a cópula, não pelo facto de a parceira perder a consciência e deixar de retribuir mas apenas por não conseguir dominar a inércia daquele corpo colossal e morto. Um dia decidiram experimentar fazer amor sobre a mesa da sala, pensando que o desconforto da dureza do tampo lenhoso seria um entrave às investidas do sono. A verdade é que, mesmo assim, ela não só adormeceu como também caiu, bateu com a têmpora no mosaico do chão e faleceu sem dar por isso.

Agora o nosso Sidónio anda cada vez mais maluco! Além de ver a cara da Doroteia na falangeta também afirma que fala com deus, que este se chama Fernando Manuel e que lhe disse quem são os responsáveis pelos execráveis homicídios que têm contaminado esta terra. Assim, onde é que ele vai parar? Temos de ter muito cuidado com ele! Não acha, padre?      

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