Estou farto da porcaria da minha vida,
padre! Desde que o nosso amigo Silveira apareceu amortalhado em sangue, com a
ponta do bico de uma garça-real espetada por baixo do caroço adâmico, ando mais
enervado do que uma ninfomaníaca sem penetração. Desculpe esta linguagem
agreste, mas a verdade é que o senhor não me dá qualquer apoio, e olhe que
ambos sabemos que o devia fazer, pois se eu quiser dar ao serrote tenho muito
para contar. Dedica a porcaria da sua existência a fazer macaquices nas
missinhas, como se acreditasse, de facto, nessas coisas. A verdade, senhor
padre, é que me apetece matar toda a gente com quem sonho nas minhas noites de
pesadelo.
Ontem realizei um filme de suspense enquanto
me debatia nos abraços maliciosos de Morfeu e senti crescer em mim uma vontade
compulsiva de esfacelar o mísero corpo do Sidónio Matacão, de lhe esborrachar
aquela bicanca vermelhusca e catosa, de lhe esmigalhar o crânio e de
transformá-lo, sem dó nem piedade, numa papa irreconhecível. O sacana sempre
mereceu a morte, não tenho dúvidas, a existência dele é a perda de uma boa
oportunidade para uma vida decente, e olhe que não digo isto apenas por vê-lo
enfardar sandes de presunto, triturar chamuças, amassar pastéis de bacalhau e
sorver minis e copos de vinho carrascão no café Safari. O que mais me irrita no
amigo do Silveira é o facto de aquele animal estar convencido de que a
cabeça do seu segundo dedo do pé direito é a cara da sua amada Doroteia, uma
mulher anafada cujas bochechas parecem querer libertar-se da prisão da cara e
cair em direção ao centro da Terra. Sentado na esplanada, tira o sapato e a meia
e teima em mostrar o objeto da sua fixação, a maldita e exasperante falangeta,
perante os protestos desesperados dos narizes presentes.
O Sidónio apenas gosta de mulheres
bem fornecidas de tecido adiposo, é obcecado pela redondice feminina, talvez
para contrastar com a angulosidade da sua penca hipertrófica, uma herança de
família, pois dizem que o seu avô, um industrial de mármores da zona de Pêro Pinheiro,
utilizava o bico da narigueta para perspectivar os cortes da pedra. A Doroteia
foi o grande amor da vida do Matacão, mas tinha uma característica fisiológica
que acabou por lhe acarretar consequências trágicas: adormecia subitamente em
qualquer situação e, se não tivesse amparo, caía redonda, embora, felizmente, a
queda fosse sempre amortecida pelas suas carnes moles. O grande objetivo da
moça era ter um filho do Sidónio e chamar-lhe Fernando Manuel, nunca ninguém
percebeu porquê. Engravidar não era fácil, porque adormecia sistematicamente a
meio do regalo lúbrico e o Matacão acabava por abandonar a cópula, não pelo
facto de a parceira perder a consciência e deixar de retribuir mas apenas por
não conseguir dominar a inércia daquele corpo colossal e morto. Um dia
decidiram experimentar fazer amor sobre a mesa da sala, pensando que o
desconforto da dureza do tampo lenhoso seria um entrave às investidas do sono.
A verdade é que, mesmo assim, ela não só adormeceu como também caiu, bateu com
a têmpora no mosaico do chão e faleceu sem dar por isso.
Agora o nosso Sidónio anda
cada vez mais maluco! Além de ver a cara da Doroteia na falangeta também afirma
que fala com deus, que este se chama Fernando Manuel e que lhe disse quem são
os responsáveis pelos execráveis homicídios que têm contaminado esta terra.
Assim, onde é que ele vai parar? Temos de ter muito cuidado com ele! Não acha,
padre?
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