Não percebo o que se passa comigo, padre. Como
já lhe tinha dito, dei em ter sonhos premonitórios, já lá vai um mês, pelo
menos, e são cada vez mais preocupantes. Nem eu próprio acredito nos lampejos
mnésicos que tenho das minhas noites tormentosas, sempre que acordo cá estão as
imagens na minha consciência, tão claras como as percepções da vigília,
sinto-me uma Cassandra que se desacredita a si mesma, como a princesa que viu
no nascimento de Páris, o irmão, a futura ruína da sua amada Tróia, mas ninguém
acreditou nela, também eu não aceito os meus sonhos, dou calduços violentos na
base de nuca para espevitar a vigília, julgando que ainda estou nos delírios de
Morfeu, esse maldito confusionista de tretas, mas a verdade é que acabo por
verificar sempre que, afinal, os eflúvios oníricos se concretizaram em matéria
de facto.
A chona passada voltaram-me os pesadelos. Às
tantas da noite, vi-me indefinido por uma luz mortiça e bruxuleante, num
compartimento esconso e arroxeado onde um corpo, estendido numa cama, em cima
do edredon, resfolegava e fazia
ressoar estrepitosamente a cavidade retronasal, a faringe, sei lá, os estúpidos
tecidos moles que teimam em viciar-se na roncopatia. Estava de papo para o ar
e, da minha perspetiva, aduncava-se uma penca exorbitante, muito maior do que a
do Sidónio Matacão, o que não é nada fácil, pois dizem que este descende de uma
antiquíssima família de industriais do mármore de Pero Pinheiro, que afilou os
narizes ao longo das gerações por causa de os indivíduos estarem sempre em
posição de ave de rapina, a esgrilar os veios das pedras. Esta só podia ser a
narigueta do Silveira, esse mentiroso compulsivo, nos últimos tempos contribuiu
para nos difamar, a mim, a si e ao Marcial, andou a contar uma história de eu
ser iraniano, filho da mãe, era tão trafulha que uma vez convenceu um velhote,
que padecia horrores com abcessos nos dentes, de que na América os idosos
tinham todos a boca “open space” e
viviam lindamente, comiam todos no McDonald e ficavam felizes e luzidios, o
ancião, que já estava senil, chegou a casa e começou a arrancar os dentes com
esticões de cordel mas escorregou, caiu e partiu o pescoço. O Chefe Abrantes
viria depois a considerar que, nomeadamente, o velho é que fora o único responsável
pela ocorrência porque, nomeadamente, ninguém tivera culpa da sua demência.
Pois caro padre, estava eu, no sonho, a
ouvir a roncaria do Silveira e a admirar-lhe a bicanca quando um intruso
invadiu sorrateiramente o quarto, aproximou-se, cauteloso, da cama, ergueu a
mão esquerda, era esquerdino o filho da mãe, reparei que empunhava um objeto
bicudo, fiquei em suspenso, depois tentei gritar mas não consegui, o ar não me
saía da boca, estarrecido e impotente vi o assassino baixar violentamente a
arma e enterrá-la no pescoço do nosso desgraçado amigo. Enquanto este se
contorcia nos abraços da morte, o homicida afastou-se rapidamente e
desapareceu.
Um pesadelo, padre, um horrendo pesadelo!
Acordei
liquefeito em suor e não consegui readormecer, liguei o computador e fui ver a
página Web da APO, a Associação Portuguesa de Pesquisa OVNI, porque é uma das
poucas coisas que me fazem rir quando estou nos piores momentos, mas nada, nem
a APO, li um artigo com o título “JEAN CLAUDE JUNCKER ESTÁ EM CONTATO COM EXTRATERRESTRES” e apenas o achei estúpido, nem consegui o
vislumbre de um sorriso.
De manhã constatei, mais uma vez, a
natureza premonitória dos meus pesadelos: o nosso amigo Silveira jazia
amortalhado em sangue, com a ponta do bico de uma garça-real espetada por baixo
do caroço adâmico.
O Chefe Abrantes, que já tinha estado no
café Safari a matar uma data de bichos com o Marcial e o Sidónio Matacão,
revirou a casa toda à procura de pistas do assassino mas sem sucesso, até que,
desanimado, desabafou:
— Porra! Onde é que raio, nomeadamente, se
meteu o pássaro? Parece bruxedo, nomeadamente!
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