domingo, 31 de julho de 2016

22 - A MULHER DE GELO



Não percebo o que se passa consigo, padre. Perde as noites no facebook e não tem tempo para falar comigo de assuntos sérios? Problemas que nos interessam, se bem me entende!
O Francisco, amigo do Silveira, regressou depois de algum tempo fora, julgo que no Alentejo, e disse-lhe que desconfia que nós – eu, o padre e o Marcial – é que andamos por aí a matar as pessoas. A última foi a Dona Aurora, a velha invisual de quem o Chefe Abrantes e a inspectora esperavam que ajudasse a descobrir o assassino, identificando o barulho dos seus passos. Levaram até ela a dona do Café Safari, porque relacionaram a pequena protuberância chifruda que esta possui na testa com o chifre de rinoceronte utilizado no homicídio do idoso do 5.º andar. A Dona Aurora negou peremptoriamente que os passos que ouvira na noite do assassínio fossem os da mulher fornecedora dos bichos que a comandita do Marcial, do Sidónio Matacão e do Chefe Abrantes começam a matar logo de madrugada.
Veja o padre que eu continuo com umas premonições do diabo, certinhas, certinhas que até metem nojo! A chona passada adormeci a pensar na “garota de gelo”, uma jovem de dezanove anos, chamada Jean Hiliard, habitante do Minesota, que ficou congelada numa noite de tempestade com temperaturas de vinte graus negativos. O estranho caso aconteceu em 1980 e foi seguido por todos os órgãos de comunicação da época. A rapariga deu entrada no hospital mais dura do que uma pedra mas, ao fim de uma horas embrulhada em cobertores, ganhou convulsões e descongelou. Quarenta e nove dias depois saiu do internamento sem qualquer dano físico ou mental, deixando o mundo perplexo.
A noite passada, estava eu a sonhar com a jovem do Minesota quando ela se transformou na Dona Aurora, a testemunha auditiva do assassinato do vizinho idoso do andar de cima.
Um pesadelo, padre, um horrendo pesadelo!
As ventas marmóreas da anciã apareceram-me na obscuridade do sonho acompanhadas por um ruído persistente e incomodativo, que logo percebi ser o de um pequeno motor de electrodoméstico. Pelo frio que se fazia sentir e que enregelou a minha entrega ao divino Hypnos, só podia tratar-se de uma máquina refrigeradora.
Na manhã seguinte constatei, mais uma vez, a bizarra constituição premonitória dos meus sonhos: alguém, imitando o procedimento que a natureza realizara com a jovem do Minesota, congelara a Dona Aurora numa arca frigorífica que o filho mais velho, o Estampido, como lhe chamam, caçador certificado, utilizava como reservatório de lebres e perdizes da sua faina predatória. Para introduzir a idosa na caixa do refrigerador o assassino teve de retirar vários animais de caça, que deixou espalhados pela cozinha, irremediavelmente impróprios para as patuscadas. Este comportamento foi o que mais desconsolou o filho da anciã: praguejou, debulhado em lágrimas, revoltado com tamanha crueldade, acusando mesmo o Chefe Abrantes de inoperância até que este vociferou:
— Faça favor de se calar, nomeadamente, com a porcaria dos animais, porque, nomeadamente, o que me interessa é a sua mãe, nomeadamente a Dona Aurora, e se não se cala, nomeadamente, dou-lhe voz de prisão!
Por que diabo tenho sonhos com estas coisas, padre? E são tão realistas que até parece que estou lá, a presenciar os factos. Isto anda a pôr-me a cabeça à roda.

Preciso de falar consigo. E temos de ter cuidado com o amigo do Silveira, o tal Francisco. Ainda nos vai meter em alhadas.


Corações ao alto, padre! Ele está no meio de nós!

terça-feira, 19 de julho de 2016

21 - "CAFÉ" SAFARI


Mas entretanto, enquanto o Padre responde e não responde à missiva, vale a pena dar-se um pulo ao «incontornável» Café Safari ["Café", evidentemente, é uma hipérbole; mas assim gosta a senhora de designar a sua tasca], onde o grupo do costume se reúne, sob o signo da apreensão.
O Marcial estava no exterior, com o Sidónio Matacão, quando viram aproximar-se o Chefe Abrantes.
Sidónio acenou-lhe - o que foi um gesto que bem poderia ter evitado por causa causa do fedor que emanava das axilas. Marcial ainda protestou: Apre! [O termo não foi exactamente esse, mas mantenhamos o escrito dentro de certos limites.]
SIDÓNIO MATACÃO - Anda daí, menino. Pago-te uma.
MARCIAL - Vens acompanhado? Quem é o figurão?
SIDÓNIO MATACÃO - Oh Marcial, pá, tem maneiras, homem. Mas, de facto, quem é o figurão, ó Chefe?
CHEFE ABRANTES - Rapazes. Apresento-vos nomeadamente o Inspector Cláudio Ramos.
MARCIAL & SIDÓNIO [ao mesmo tempo] - Inspector!?
CHEFE ABRANTES - Sim, rapazes. Hoje não venho nomeadamente para a farra. Aliás, nomeadamente, nem posso beber. Estou de serviço. Ambos os dois, nomeadamente. Na verdade, viemos para vos interrogar.
Marcial e Sidónio estão estupefactos. Sabiam que havia suspeitos, mas nunca pensaram que os suspeitos fossem eles próprios. E o Chefe Nomeadamente, que era seu amigo, encontrava-se do outro lado da barricada. Não bebia. E queria interrogá-los. Até falava em que teria de os colocar numa fila de suspeitos, para ver se a vizinha reconhecia algum deles.
SIDÓNIO MATACÃO - A vizinha!? Mas qual vizinha?
INSPECTOR RAMOS - A do andar de baixo.
SIDÓNIO MATACÃO - Mas...mas...mas... a Dona Aurora não é cega?
CHEFE ABRANTES - Nomeadamente invisual. Não é cega, invisual é que se diz, nomeadamente. Sim.
SIDÓNIO MATACÃO - Hão-de desculpar-me, mas isto está a escapar-me. Então, se a Dona Aurora é cega, nomeadamente invisual, como poderá reconhecer os assassinos?
INSPECTOR RAMOS - Pois a ideia é que os suspeitos batam com os pés no chão, para que a senhora identifique as passadas.
Nesse momento, apareceu a proprietária do estabelecimento. Vinha protestar, porque se gastava muito em conversa e pouco em cerveja. Nesse momento, repararam todos em algo em que, curiosamente, nenhum destes homens observadores reparara ainda. A «feiticeira» ostentava, como Madame Dimanche (e, já agora, como o assassinado da nossa história) um perfeitíssimo corno na testa.
CHEFE ABRANTES - «Operação Corno Duro» em pleno!
TODOS - Como!?

segunda-feira, 18 de julho de 2016

20 - MATAR O BICHO, NOMEADAMENTE

         

Sr. padre Tortulho, dada a nossa relação de amizade, confidência e até cumplicidade, se bem me entende, resolvi escrever-lhe esta carta, à moda antiga, para lhe dar conta das minhas recentes preocupações em relação ao meu familiar que bem conhece. Penso que, de certo modo, este assunto também lhe diz respeito.
O meu primo, o Marcial, veio-me com uma treta desmiolada sobre o chefe Abrantes, também conhecido por “nomeadamente” pelo facto de aplicar de forma sistemática este termo como um simples marcador do ritmo frásico. Já não suporto o delírio mental deste meu familiar — entre aspas, pois na verdade não se pode encontrar nele a mais ridícula gota de sangue aparentada às que percorrem este corpinho de luxo que me regala os dias. Tornámo-nos primos pelo facto de termos sido adotados pela nossa saudosa protetora, a quem chamo carinhosamente a velha, que foi cruamente assassinada quando ainda éramos adolescentes e nos deixou a órfãos nesta selva impiedosa, que é a sociedade, mas também maravilhosamente livres e escorados pela parte da herança que nos coube e que ainda hoje nos mantém isentos das agruras do trabalho.
O Marcial é feio e tresloucado, um javardo pestilento e focinhudo que chafurda na porcaria da bebida, pois tornou-se um profissional da carraspana. Além de embirrar com as paredes, teimando em afastá-las do passeio aos encontrões, — alguns engraçadinhos já lhe enviaram simulacros de agradecimentos oficiais pelo alargamento das ruas — às vezes fica catatónico, a olhar fixamente para elas durante infindáveis minutos, até cair desamparado com as ventas no solo. Justifica este seu mísero estado com o facto de estar cheio de remorsos por causa do que fizemos. Estou farto de lhe garantir que não fizemos coisa nenhuma, ou então fez ele sem eu saber, mas o “cabeça de burro” insiste neste erro até me esturricar a mioleira.
Nos últimos meses, talvez anos, atiçou relações com o chefe Abrantes e com o Sidónio Matacão, cujo apelido deriva de ser filho do dono de uma fábrica de mármores em Pêro Pinheiro e que tem fama de possuir dois testículos a pender para o lado direito, pois apenas isso justifica, segundo dizem, o facto de ter sempre o ombro dessa lateral do corpo descaído.
Juntam-se os três num cantinho ali no largo principal da freguesia, numa tasca chamada Safari, e enfardam, no bucho, imperiais, copos de vinho, tremoços, pão, chouriço e fritos. Fazem-no no exterior, em pé, como a maior parte dos fregueses, porque o interior do estabelecimento é tão pequeno que não aguenta mais do que quatro indivíduos em simultâneo, e não podem ser avantajados no que quer que seja. Atrás do balcão está uma senhora muito magra e baixa, quase sem espaço para se mexer. Corre o boato de que é feiticeira, porque satisfaz todas as encomendas sem se entender de onde saem os produtos — faz os pedidos de bebida e comida através de um pequeno orifício quadrado, na parede da esquerda, enfia lá o braço e, como por artes mágicas, vai retirando tudo o que solicitou à entidade misteriosa que se encontra do outro lado. Todos são unânimes em afirmar que a cerveja, o vinho, os tremoços, o chouriço e os fritos manifestam uma qualidade fora do comum, parecem até bens importados.
Depois de muito cogitar a propósito da pertinência do nome Safari acabei por entendê-la: é ali que todas as madrugadas, a custos acessíveis, o meu primo, o Abrantes, o Matacão e o resto da comandita ébria matam o bicho na grande aventura da vida.
Peço desculpa, padre Tortulho, por me ter desviado do assunto que me trouxe aqui. Voltando ao mesmo, quero dizer-lhe que o Marcial ouviu por diversas vezes o Abrantes segredar-lhe que a GNR já tem suspeitos no caso do homicídio e descabeçamento do nosso vizinho idoso do quinto andar. Desagrada-me profundamente ver o Marcial nestas intimidades com um agente da autoridade, por mais insignificante que seja. Desconsola-me sobretudo a possibilidade de haver assassinos na vizinhança.
É inquietante, deveras inquietante!

Não acha, senhor padre?

quarta-feira, 13 de julho de 2016

19. RELATÓRIO DO CHEFE ABRANTES


O assassinado, nomeadamente sr. X, foi encontrado à porta de sua casa, cuja acabara de abrir aos indivíduos que terão perpetrado o crime. O assassinado foi degolado sob forma de lhe ter sido separada a cabeça do restante corpo a nível do pescoço. Na cabeça, que se encontrava ao lado do corpo - nomeadamente a cerca de 25 cm. do mesmo - notámos um chifre; nomeadamente na testa. A equipa forense tenta ainda determinar se, nomeadamente, o chifre pertencia mesmo à cabeça do assassinado, ou se seria um chifre que lhe haviam espetado, nomeadamente de um rinoceronte. Seja como for, para espanto da equipa forense, o corpo ainda se movia bastante, nomeadamente a nível dos membros superiores e dos membros inferiores, que executavam movimentos absurdos e mesmo inconvenientes, nomeadamente ordinários.
Seguimos diversas pistas, nomeadamente não há pistas nenhumas.
O Inspector Cláudio Ramos tem procurado aceder ao computador da vítima, nomeadamente sr. X, mas aparentemente o acesso carece de uma palavra passe. Temos estado a alvitrar possibilidades, mas assim arriscamo-nos a que a investigação venha a demorar.
Gostaria que esta acção, nomeadamente procura e aprisionamento dos perpetradores do crime, tivesse um nome. Se há «apito dourado», «irmãos metralha», nomes tão engraçados e tão bem achados, eu gostaria de propor que se lhe chamasse «Operação Corno Duro.»
Nomeadamente.