Sr. padre Tortulho, dada a
nossa relação de amizade, confidência e até cumplicidade, se bem me entende, resolvi
escrever-lhe esta carta, à moda antiga, para lhe dar conta das minhas recentes
preocupações em relação ao meu familiar que bem conhece. Penso que, de certo
modo, este assunto também lhe diz respeito.
O meu primo, o Marcial,
veio-me com uma treta desmiolada sobre o chefe Abrantes, também conhecido por
“nomeadamente” pelo facto de aplicar de forma sistemática este termo como um
simples marcador do ritmo frásico. Já não suporto o delírio mental deste meu
familiar — entre aspas, pois na verdade não se pode encontrar nele a mais ridícula
gota de sangue aparentada às que percorrem este corpinho de luxo que me regala
os dias. Tornámo-nos primos pelo facto de termos sido adotados pela nossa
saudosa protetora, a quem chamo carinhosamente a velha, que foi cruamente
assassinada quando ainda éramos adolescentes e nos deixou a órfãos nesta selva
impiedosa, que é a sociedade, mas também maravilhosamente livres e escorados
pela parte da herança que nos coube e que ainda hoje nos mantém isentos das
agruras do trabalho.
O Marcial é feio e
tresloucado, um javardo pestilento e focinhudo que chafurda na porcaria da
bebida, pois tornou-se um profissional da carraspana. Além de embirrar com as
paredes, teimando em afastá-las do passeio aos encontrões, — alguns
engraçadinhos já lhe enviaram simulacros de agradecimentos oficiais pelo
alargamento das ruas — às vezes fica catatónico, a olhar fixamente para elas
durante infindáveis minutos, até cair desamparado com as ventas no solo.
Justifica este seu mísero estado com o facto de estar cheio de remorsos por
causa do que fizemos. Estou farto de lhe garantir que não fizemos coisa
nenhuma, ou então fez ele sem eu saber, mas o “cabeça de burro” insiste neste
erro até me esturricar a mioleira.
Nos últimos meses, talvez
anos, atiçou relações com o chefe Abrantes e com o Sidónio Matacão, cujo apelido deriva de ser filho
do dono de uma fábrica de mármores em Pêro Pinheiro e que tem fama de possuir dois
testículos a pender para o lado direito, pois apenas isso justifica, segundo
dizem, o facto de ter sempre o ombro dessa lateral do corpo descaído.
Juntam-se os três num
cantinho ali no largo principal da freguesia, numa tasca chamada Safari, e
enfardam, no bucho, imperiais, copos de vinho, tremoços, pão, chouriço e fritos.
Fazem-no no exterior, em pé, como a maior parte dos fregueses, porque o
interior do estabelecimento é tão pequeno que não aguenta mais do que quatro
indivíduos em simultâneo, e não podem ser avantajados no que quer que seja.
Atrás do balcão está uma senhora muito magra e baixa, quase sem espaço para se
mexer. Corre o boato de que é feiticeira, porque satisfaz todas as encomendas
sem se entender de onde saem os produtos — faz os pedidos de bebida e comida
através de um pequeno orifício quadrado, na parede da esquerda, enfia lá o
braço e, como por artes mágicas, vai retirando tudo o que solicitou à entidade
misteriosa que se encontra do outro lado. Todos são unânimes em afirmar que a
cerveja, o vinho, os tremoços, o chouriço e os fritos manifestam uma qualidade
fora do comum, parecem até bens importados.
Depois de muito cogitar a
propósito da pertinência do nome Safari acabei por entendê-la: é ali que todas
as madrugadas, a custos acessíveis, o meu primo, o Abrantes, o Matacão e o
resto da comandita ébria matam o bicho na grande aventura da vida.
Peço desculpa, padre
Tortulho, por me ter desviado do assunto que me trouxe aqui. Voltando ao mesmo,
quero dizer-lhe que o Marcial ouviu por diversas vezes o Abrantes segredar-lhe
que a GNR já tem suspeitos no caso do homicídio e descabeçamento do nosso
vizinho idoso do quinto andar. Desagrada-me profundamente ver o Marcial nestas
intimidades com um agente da autoridade, por mais insignificante que seja.
Desconsola-me sobretudo a possibilidade de haver assassinos na vizinhança.
É inquietante, deveras
inquietante!
Não acha, senhor padre?
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