segunda-feira, 18 de julho de 2016

20 - MATAR O BICHO, NOMEADAMENTE

         

Sr. padre Tortulho, dada a nossa relação de amizade, confidência e até cumplicidade, se bem me entende, resolvi escrever-lhe esta carta, à moda antiga, para lhe dar conta das minhas recentes preocupações em relação ao meu familiar que bem conhece. Penso que, de certo modo, este assunto também lhe diz respeito.
O meu primo, o Marcial, veio-me com uma treta desmiolada sobre o chefe Abrantes, também conhecido por “nomeadamente” pelo facto de aplicar de forma sistemática este termo como um simples marcador do ritmo frásico. Já não suporto o delírio mental deste meu familiar — entre aspas, pois na verdade não se pode encontrar nele a mais ridícula gota de sangue aparentada às que percorrem este corpinho de luxo que me regala os dias. Tornámo-nos primos pelo facto de termos sido adotados pela nossa saudosa protetora, a quem chamo carinhosamente a velha, que foi cruamente assassinada quando ainda éramos adolescentes e nos deixou a órfãos nesta selva impiedosa, que é a sociedade, mas também maravilhosamente livres e escorados pela parte da herança que nos coube e que ainda hoje nos mantém isentos das agruras do trabalho.
O Marcial é feio e tresloucado, um javardo pestilento e focinhudo que chafurda na porcaria da bebida, pois tornou-se um profissional da carraspana. Além de embirrar com as paredes, teimando em afastá-las do passeio aos encontrões, — alguns engraçadinhos já lhe enviaram simulacros de agradecimentos oficiais pelo alargamento das ruas — às vezes fica catatónico, a olhar fixamente para elas durante infindáveis minutos, até cair desamparado com as ventas no solo. Justifica este seu mísero estado com o facto de estar cheio de remorsos por causa do que fizemos. Estou farto de lhe garantir que não fizemos coisa nenhuma, ou então fez ele sem eu saber, mas o “cabeça de burro” insiste neste erro até me esturricar a mioleira.
Nos últimos meses, talvez anos, atiçou relações com o chefe Abrantes e com o Sidónio Matacão, cujo apelido deriva de ser filho do dono de uma fábrica de mármores em Pêro Pinheiro e que tem fama de possuir dois testículos a pender para o lado direito, pois apenas isso justifica, segundo dizem, o facto de ter sempre o ombro dessa lateral do corpo descaído.
Juntam-se os três num cantinho ali no largo principal da freguesia, numa tasca chamada Safari, e enfardam, no bucho, imperiais, copos de vinho, tremoços, pão, chouriço e fritos. Fazem-no no exterior, em pé, como a maior parte dos fregueses, porque o interior do estabelecimento é tão pequeno que não aguenta mais do que quatro indivíduos em simultâneo, e não podem ser avantajados no que quer que seja. Atrás do balcão está uma senhora muito magra e baixa, quase sem espaço para se mexer. Corre o boato de que é feiticeira, porque satisfaz todas as encomendas sem se entender de onde saem os produtos — faz os pedidos de bebida e comida através de um pequeno orifício quadrado, na parede da esquerda, enfia lá o braço e, como por artes mágicas, vai retirando tudo o que solicitou à entidade misteriosa que se encontra do outro lado. Todos são unânimes em afirmar que a cerveja, o vinho, os tremoços, o chouriço e os fritos manifestam uma qualidade fora do comum, parecem até bens importados.
Depois de muito cogitar a propósito da pertinência do nome Safari acabei por entendê-la: é ali que todas as madrugadas, a custos acessíveis, o meu primo, o Abrantes, o Matacão e o resto da comandita ébria matam o bicho na grande aventura da vida.
Peço desculpa, padre Tortulho, por me ter desviado do assunto que me trouxe aqui. Voltando ao mesmo, quero dizer-lhe que o Marcial ouviu por diversas vezes o Abrantes segredar-lhe que a GNR já tem suspeitos no caso do homicídio e descabeçamento do nosso vizinho idoso do quinto andar. Desagrada-me profundamente ver o Marcial nestas intimidades com um agente da autoridade, por mais insignificante que seja. Desconsola-me sobretudo a possibilidade de haver assassinos na vizinhança.
É inquietante, deveras inquietante!

Não acha, senhor padre?

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