domingo, 29 de novembro de 2015

14. BALANÇO


Ai eu é que te arranjo problemas!? Malandro! Corsário! Filho de um canário amarelo! Medicamento sem bula! Míssil teleguiado sem comando! - irritou-se o Silveira. - Caramba - continuou ele.     - Topas tudo à légua! E desmanchas-me como num passe de magia! Está bem, está bem, a minha história era em parte inventada! Ando a construí-la a meias com o Davoud - a ideia é fazer um guião para a TV. O Davoud acha que devíamos testar a sua credibilidade começando a espalhá-la como sendo verídica. As ideias são todas... nem vais imaginar... segura-te, que até cais para o lado... dele? Não! Do Padre, meu! Do Padre! O Padre é delirante, é um inventor e um manipulador tramado. Nem sei se será mesmo padre. Nunca tinha visto um padre viciado no facebook. Eu, repórter de guerra!? Tens razão, topaste-me logo meu filho da mãe. Nem é só a idade não bater certo com a história. É a coragem bater ainda menos certo! Alguma vez, eu sozinho, a espreitar pela janela de um hotel já meio em ruínas, entre bombardeamentos a aproximar-se e snipers a fazer pontaria dos telhados? Mas olha, tu tens histórias, pá. Essa coisa dos OVNIS, e tal, isso tem piada, tem garra. Talvez pudesses entrar na equipa. Inventarmos uma grande história com iranianos, marcianos, ex-namoradas... o quê? Não te queres meter com o Padre? Com o Davoud muito menos? Eu compreendo que não te queiras meter com o Davoud, pá. Uma coisa naquilo que eu contei é absolutamente verdade. O tipo e o mudo deram cabo da velha rica! Agora entre nós, vou revelar-te um segredo. O Padre é que foi o cérebro do plano. O Padre é perigoso. Hã? Por que é que te estou a contar tudo isto? Olha, a razão é só uma. Porque estou borrado de medo. Agora vê lá o que fazes. Sobretudo, não me desmintas. Agora não venhas dizer que isto não bate certo, que te estou a aldrabar, e a inflectir a história por outra montanha qualquer. Em todo o caso, estás avisado. Não te metas com o Padre! Não te metas com o Davoud! E não te metas comigo, meu amigo desnaturado! Meu herói de trazer por casa! Constipado! Alienígena! Papa-tremoços! Fogooooo!  

sábado, 7 de novembro de 2015

13. O NASCIMENTO DAS ESPLANADAS EM CASCAIS

Duas semanas depois do aparecimento do Ovni, o largo onde haviam colocado a estátua de Camões, em Cascais, e que ficou conhecido pelo nome do poeta dos oxímoros, transformou-se por completo, ganhando uma vivacidade nunca antes imaginada. Até aí, os bares e as pastelarias que circundavam a praça trancavam-se no seu interior, não lhes passando pela ideia a mínima suspeita de que podiam expandir-se muito para além das portas, aproveitar a calçada portuguesa e o bom clima e seduzir as gargantas e as carteiras de uma multidão sedenta do convívio noturno.
Os dois pubs mais conhecidos até à data estavam ligados à inglesada, como revelavam os nomes: Jonh Bull e Beefeater. O primeiro tinha um restaurante no piso superior, se bem me lembro, e era mais conhecido por servir um bom bife de carne do lombo, cozinhado numa caçarola de cobre e coberto com um molho de natas, apimentado. O segundo era decorado com estofos coloridos, julgo que avermelhados, e estes tinham tanto fumo de tabaco entranhado que apenas não padeciam de doença cancerosa por não possuírem pulmões. Circulava por ele imensa cerveja, scotch, gin e cabeças a desviarem-se de setas que fendiam o ar, atiradas para um alvo por clientes fanáticos do jogo.
Quinze dias depois do espectáculo do objeto voador não identificado, dois iranianos tomaram posse do Canal7, um bar sem história, adormecido ao lado do Jonh Bull, e revolucionaram a praça. A receita foi simples: semear cadeiras e mesas pelo largo, até aos pés da estátua de Camões, e ver como delas germinavam corpos de todas as origens e feitios a fazerem escorrer cerveja pelas goelas até de madrugada. Na noite em que abriu fui lá com a Angélica, que no final da noite me garantiu que voltara a ver o OVNI, mas confesso que eu tinha bebido tanto que não dei por nada.
O impacto dos irmãos persas foi tamanho que rapidamente cresceu a lenda de que havia sido a nave espacial a trazê-los, o que era quase o mesmo que dizer que, afinal, não eram exilados da revolução iraniana mas sim criaturas alienígenas. O mais velho era bem nutrido de carnes e de bigode. O mais novo era alto, magro e encurvado. Falo neles porque tenho pensado muito nesta questão dos pais do Davoud e lembrei-me de um pormenor interessante: num dos fins de semana em Versailles, o amigo do Pompílio falou num iraniano que vivia em Cascais e costumava visitar o cônsul. Pela descrição que me fez, tenho andado a cogitar se não seria o mais velho dos irmãos, e se não terá sido ele a trazer o Davoud para a região, depois do acidente que vitimou o casal de Aveiro.

Arranjas-me cada problema! Que raio de confusão, Silveira!