terça-feira, 8 de novembro de 2016

23 - UM BICO DE GARÇA NO PESCOÇO DO SILVEIRA

Não percebo o que se passa comigo, padre. Como já lhe tinha dito, dei em ter sonhos premonitórios, já lá vai um mês, pelo menos, e são cada vez mais preocupantes. Nem eu próprio acredito nos lampejos mnésicos que tenho das minhas noites tormentosas, sempre que acordo cá estão as imagens na minha consciência, tão claras como as percepções da vigília, sinto-me uma Cassandra que se desacredita a si mesma, como a princesa que viu no nascimento de Páris, o irmão, a futura ruína da sua amada Tróia, mas ninguém acreditou nela, também eu não aceito os meus sonhos, dou calduços violentos na base de nuca para espevitar a vigília, julgando que ainda estou nos delírios de Morfeu, esse maldito confusionista de tretas, mas a verdade é que acabo por verificar sempre que, afinal, os eflúvios oníricos se concretizaram em matéria de facto.    
A chona passada voltaram-me os pesadelos. Às tantas da noite, vi-me indefinido por uma luz mortiça e bruxuleante, num compartimento esconso e arroxeado onde um corpo, estendido numa cama, em cima do edredon, resfolegava e fazia ressoar estrepitosamente a cavidade retronasal, a faringe, sei lá, os estúpidos tecidos moles que teimam em viciar-se na roncopatia. Estava de papo para o ar e, da minha perspetiva, aduncava-se uma penca exorbitante, muito maior do que a do Sidónio Matacão, o que não é nada fácil, pois dizem que este descende de uma antiquíssima família de industriais do mármore de Pero Pinheiro, que afilou os narizes ao longo das gerações por causa de os indivíduos estarem sempre em posição de ave de rapina, a esgrilar os veios das pedras. Esta só podia ser a narigueta do Silveira, esse mentiroso compulsivo, nos últimos tempos contribuiu para nos difamar, a mim, a si e ao Marcial, andou a contar uma história de eu ser iraniano, filho da mãe, era tão trafulha que uma vez convenceu um velhote, que padecia horrores com abcessos nos dentes, de que na América os idosos tinham todos a boca “open space” e viviam lindamente, comiam todos no McDonald e ficavam felizes e luzidios, o ancião, que já estava senil, chegou a casa e começou a arrancar os dentes com esticões de cordel mas escorregou, caiu e partiu o pescoço. O Chefe Abrantes viria depois a considerar que, nomeadamente, o velho é que fora o único responsável pela ocorrência porque, nomeadamente, ninguém tivera culpa da sua demência.   
Pois caro padre, estava eu, no sonho, a ouvir a roncaria do Silveira e a admirar-lhe a bicanca quando um intruso invadiu sorrateiramente o quarto, aproximou-se, cauteloso, da cama, ergueu a mão esquerda, era esquerdino o filho da mãe, reparei que empunhava um objeto bicudo, fiquei em suspenso, depois tentei gritar mas não consegui, o ar não me saía da boca, estarrecido e impotente vi o assassino baixar violentamente a arma e enterrá-la no pescoço do nosso desgraçado amigo. Enquanto este se contorcia nos abraços da morte, o homicida afastou-se rapidamente e desapareceu.
Um pesadelo, padre, um horrendo pesadelo!

        Acordei liquefeito em suor e não consegui readormecer, liguei o computador e fui ver a página Web da APO, a Associação Portuguesa de Pesquisa OVNI, porque é uma das poucas coisas que me fazem rir quando estou nos piores momentos, mas nada, nem a APO, li um artigo com o títuloJEAN CLAUDE JUNCKER ESTÁ EM CONTATO COM EXTRATERRESTRESe apenas o achei estúpido, nem consegui o vislumbre de um sorriso.

De manhã constatei, mais uma vez, a natureza premonitória dos meus pesadelos: o nosso amigo Silveira jazia amortalhado em sangue, com a ponta do bico de uma garça-real espetada por baixo do caroço adâmico.
O Chefe Abrantes, que já tinha estado no café Safari a matar uma data de bichos com o Marcial e o Sidónio Matacão, revirou a casa toda à procura de pistas do assassino mas sem sucesso, até que, desanimado, desabafou:
— Porra! Onde é que raio, nomeadamente, se meteu o pássaro? Parece bruxedo, nomeadamente!

domingo, 31 de julho de 2016

22 - A MULHER DE GELO



Não percebo o que se passa consigo, padre. Perde as noites no facebook e não tem tempo para falar comigo de assuntos sérios? Problemas que nos interessam, se bem me entende!
O Francisco, amigo do Silveira, regressou depois de algum tempo fora, julgo que no Alentejo, e disse-lhe que desconfia que nós – eu, o padre e o Marcial – é que andamos por aí a matar as pessoas. A última foi a Dona Aurora, a velha invisual de quem o Chefe Abrantes e a inspectora esperavam que ajudasse a descobrir o assassino, identificando o barulho dos seus passos. Levaram até ela a dona do Café Safari, porque relacionaram a pequena protuberância chifruda que esta possui na testa com o chifre de rinoceronte utilizado no homicídio do idoso do 5.º andar. A Dona Aurora negou peremptoriamente que os passos que ouvira na noite do assassínio fossem os da mulher fornecedora dos bichos que a comandita do Marcial, do Sidónio Matacão e do Chefe Abrantes começam a matar logo de madrugada.
Veja o padre que eu continuo com umas premonições do diabo, certinhas, certinhas que até metem nojo! A chona passada adormeci a pensar na “garota de gelo”, uma jovem de dezanove anos, chamada Jean Hiliard, habitante do Minesota, que ficou congelada numa noite de tempestade com temperaturas de vinte graus negativos. O estranho caso aconteceu em 1980 e foi seguido por todos os órgãos de comunicação da época. A rapariga deu entrada no hospital mais dura do que uma pedra mas, ao fim de uma horas embrulhada em cobertores, ganhou convulsões e descongelou. Quarenta e nove dias depois saiu do internamento sem qualquer dano físico ou mental, deixando o mundo perplexo.
A noite passada, estava eu a sonhar com a jovem do Minesota quando ela se transformou na Dona Aurora, a testemunha auditiva do assassinato do vizinho idoso do andar de cima.
Um pesadelo, padre, um horrendo pesadelo!
As ventas marmóreas da anciã apareceram-me na obscuridade do sonho acompanhadas por um ruído persistente e incomodativo, que logo percebi ser o de um pequeno motor de electrodoméstico. Pelo frio que se fazia sentir e que enregelou a minha entrega ao divino Hypnos, só podia tratar-se de uma máquina refrigeradora.
Na manhã seguinte constatei, mais uma vez, a bizarra constituição premonitória dos meus sonhos: alguém, imitando o procedimento que a natureza realizara com a jovem do Minesota, congelara a Dona Aurora numa arca frigorífica que o filho mais velho, o Estampido, como lhe chamam, caçador certificado, utilizava como reservatório de lebres e perdizes da sua faina predatória. Para introduzir a idosa na caixa do refrigerador o assassino teve de retirar vários animais de caça, que deixou espalhados pela cozinha, irremediavelmente impróprios para as patuscadas. Este comportamento foi o que mais desconsolou o filho da anciã: praguejou, debulhado em lágrimas, revoltado com tamanha crueldade, acusando mesmo o Chefe Abrantes de inoperância até que este vociferou:
— Faça favor de se calar, nomeadamente, com a porcaria dos animais, porque, nomeadamente, o que me interessa é a sua mãe, nomeadamente a Dona Aurora, e se não se cala, nomeadamente, dou-lhe voz de prisão!
Por que diabo tenho sonhos com estas coisas, padre? E são tão realistas que até parece que estou lá, a presenciar os factos. Isto anda a pôr-me a cabeça à roda.

Preciso de falar consigo. E temos de ter cuidado com o amigo do Silveira, o tal Francisco. Ainda nos vai meter em alhadas.


Corações ao alto, padre! Ele está no meio de nós!

terça-feira, 19 de julho de 2016

21 - "CAFÉ" SAFARI


Mas entretanto, enquanto o Padre responde e não responde à missiva, vale a pena dar-se um pulo ao «incontornável» Café Safari ["Café", evidentemente, é uma hipérbole; mas assim gosta a senhora de designar a sua tasca], onde o grupo do costume se reúne, sob o signo da apreensão.
O Marcial estava no exterior, com o Sidónio Matacão, quando viram aproximar-se o Chefe Abrantes.
Sidónio acenou-lhe - o que foi um gesto que bem poderia ter evitado por causa causa do fedor que emanava das axilas. Marcial ainda protestou: Apre! [O termo não foi exactamente esse, mas mantenhamos o escrito dentro de certos limites.]
SIDÓNIO MATACÃO - Anda daí, menino. Pago-te uma.
MARCIAL - Vens acompanhado? Quem é o figurão?
SIDÓNIO MATACÃO - Oh Marcial, pá, tem maneiras, homem. Mas, de facto, quem é o figurão, ó Chefe?
CHEFE ABRANTES - Rapazes. Apresento-vos nomeadamente o Inspector Cláudio Ramos.
MARCIAL & SIDÓNIO [ao mesmo tempo] - Inspector!?
CHEFE ABRANTES - Sim, rapazes. Hoje não venho nomeadamente para a farra. Aliás, nomeadamente, nem posso beber. Estou de serviço. Ambos os dois, nomeadamente. Na verdade, viemos para vos interrogar.
Marcial e Sidónio estão estupefactos. Sabiam que havia suspeitos, mas nunca pensaram que os suspeitos fossem eles próprios. E o Chefe Nomeadamente, que era seu amigo, encontrava-se do outro lado da barricada. Não bebia. E queria interrogá-los. Até falava em que teria de os colocar numa fila de suspeitos, para ver se a vizinha reconhecia algum deles.
SIDÓNIO MATACÃO - A vizinha!? Mas qual vizinha?
INSPECTOR RAMOS - A do andar de baixo.
SIDÓNIO MATACÃO - Mas...mas...mas... a Dona Aurora não é cega?
CHEFE ABRANTES - Nomeadamente invisual. Não é cega, invisual é que se diz, nomeadamente. Sim.
SIDÓNIO MATACÃO - Hão-de desculpar-me, mas isto está a escapar-me. Então, se a Dona Aurora é cega, nomeadamente invisual, como poderá reconhecer os assassinos?
INSPECTOR RAMOS - Pois a ideia é que os suspeitos batam com os pés no chão, para que a senhora identifique as passadas.
Nesse momento, apareceu a proprietária do estabelecimento. Vinha protestar, porque se gastava muito em conversa e pouco em cerveja. Nesse momento, repararam todos em algo em que, curiosamente, nenhum destes homens observadores reparara ainda. A «feiticeira» ostentava, como Madame Dimanche (e, já agora, como o assassinado da nossa história) um perfeitíssimo corno na testa.
CHEFE ABRANTES - «Operação Corno Duro» em pleno!
TODOS - Como!?

segunda-feira, 18 de julho de 2016

20 - MATAR O BICHO, NOMEADAMENTE

         

Sr. padre Tortulho, dada a nossa relação de amizade, confidência e até cumplicidade, se bem me entende, resolvi escrever-lhe esta carta, à moda antiga, para lhe dar conta das minhas recentes preocupações em relação ao meu familiar que bem conhece. Penso que, de certo modo, este assunto também lhe diz respeito.
O meu primo, o Marcial, veio-me com uma treta desmiolada sobre o chefe Abrantes, também conhecido por “nomeadamente” pelo facto de aplicar de forma sistemática este termo como um simples marcador do ritmo frásico. Já não suporto o delírio mental deste meu familiar — entre aspas, pois na verdade não se pode encontrar nele a mais ridícula gota de sangue aparentada às que percorrem este corpinho de luxo que me regala os dias. Tornámo-nos primos pelo facto de termos sido adotados pela nossa saudosa protetora, a quem chamo carinhosamente a velha, que foi cruamente assassinada quando ainda éramos adolescentes e nos deixou a órfãos nesta selva impiedosa, que é a sociedade, mas também maravilhosamente livres e escorados pela parte da herança que nos coube e que ainda hoje nos mantém isentos das agruras do trabalho.
O Marcial é feio e tresloucado, um javardo pestilento e focinhudo que chafurda na porcaria da bebida, pois tornou-se um profissional da carraspana. Além de embirrar com as paredes, teimando em afastá-las do passeio aos encontrões, — alguns engraçadinhos já lhe enviaram simulacros de agradecimentos oficiais pelo alargamento das ruas — às vezes fica catatónico, a olhar fixamente para elas durante infindáveis minutos, até cair desamparado com as ventas no solo. Justifica este seu mísero estado com o facto de estar cheio de remorsos por causa do que fizemos. Estou farto de lhe garantir que não fizemos coisa nenhuma, ou então fez ele sem eu saber, mas o “cabeça de burro” insiste neste erro até me esturricar a mioleira.
Nos últimos meses, talvez anos, atiçou relações com o chefe Abrantes e com o Sidónio Matacão, cujo apelido deriva de ser filho do dono de uma fábrica de mármores em Pêro Pinheiro e que tem fama de possuir dois testículos a pender para o lado direito, pois apenas isso justifica, segundo dizem, o facto de ter sempre o ombro dessa lateral do corpo descaído.
Juntam-se os três num cantinho ali no largo principal da freguesia, numa tasca chamada Safari, e enfardam, no bucho, imperiais, copos de vinho, tremoços, pão, chouriço e fritos. Fazem-no no exterior, em pé, como a maior parte dos fregueses, porque o interior do estabelecimento é tão pequeno que não aguenta mais do que quatro indivíduos em simultâneo, e não podem ser avantajados no que quer que seja. Atrás do balcão está uma senhora muito magra e baixa, quase sem espaço para se mexer. Corre o boato de que é feiticeira, porque satisfaz todas as encomendas sem se entender de onde saem os produtos — faz os pedidos de bebida e comida através de um pequeno orifício quadrado, na parede da esquerda, enfia lá o braço e, como por artes mágicas, vai retirando tudo o que solicitou à entidade misteriosa que se encontra do outro lado. Todos são unânimes em afirmar que a cerveja, o vinho, os tremoços, o chouriço e os fritos manifestam uma qualidade fora do comum, parecem até bens importados.
Depois de muito cogitar a propósito da pertinência do nome Safari acabei por entendê-la: é ali que todas as madrugadas, a custos acessíveis, o meu primo, o Abrantes, o Matacão e o resto da comandita ébria matam o bicho na grande aventura da vida.
Peço desculpa, padre Tortulho, por me ter desviado do assunto que me trouxe aqui. Voltando ao mesmo, quero dizer-lhe que o Marcial ouviu por diversas vezes o Abrantes segredar-lhe que a GNR já tem suspeitos no caso do homicídio e descabeçamento do nosso vizinho idoso do quinto andar. Desagrada-me profundamente ver o Marcial nestas intimidades com um agente da autoridade, por mais insignificante que seja. Desconsola-me sobretudo a possibilidade de haver assassinos na vizinhança.
É inquietante, deveras inquietante!

Não acha, senhor padre?

quarta-feira, 13 de julho de 2016

19. RELATÓRIO DO CHEFE ABRANTES


O assassinado, nomeadamente sr. X, foi encontrado à porta de sua casa, cuja acabara de abrir aos indivíduos que terão perpetrado o crime. O assassinado foi degolado sob forma de lhe ter sido separada a cabeça do restante corpo a nível do pescoço. Na cabeça, que se encontrava ao lado do corpo - nomeadamente a cerca de 25 cm. do mesmo - notámos um chifre; nomeadamente na testa. A equipa forense tenta ainda determinar se, nomeadamente, o chifre pertencia mesmo à cabeça do assassinado, ou se seria um chifre que lhe haviam espetado, nomeadamente de um rinoceronte. Seja como for, para espanto da equipa forense, o corpo ainda se movia bastante, nomeadamente a nível dos membros superiores e dos membros inferiores, que executavam movimentos absurdos e mesmo inconvenientes, nomeadamente ordinários.
Seguimos diversas pistas, nomeadamente não há pistas nenhumas.
O Inspector Cláudio Ramos tem procurado aceder ao computador da vítima, nomeadamente sr. X, mas aparentemente o acesso carece de uma palavra passe. Temos estado a alvitrar possibilidades, mas assim arriscamo-nos a que a investigação venha a demorar.
Gostaria que esta acção, nomeadamente procura e aprisionamento dos perpetradores do crime, tivesse um nome. Se há «apito dourado», «irmãos metralha», nomes tão engraçados e tão bem achados, eu gostaria de propor que se lhe chamasse «Operação Corno Duro.»
Nomeadamente.

sábado, 11 de junho de 2016

18 - UM FRANGO, UM CHIFRE E SONHOS PREMONITÓRIOS


UM FRANGO, UM CHIFRE E SONHOS PREMONITÓRIOS

Quem diabo está a tocar à campainha?! Porra! São onze horas da manhã de um sábado e não me deixam ter descanso? Comandita do inferno! Deve ser aquele maluco do Silveira, esgrouviado do caraças, anda por aí a inventar coisas sobre mim e o padre e ainda tem a lata de me acordar de madrugada! Ele que espere, filho da mãe! Estou cansado, a minha noite foi, como todas, cheia de pesadelos intermináveis, cenas pavorosas de que, felizmente, me esqueço na maior parte dos casos. Todas as noites é a mesma coisa, o estúpido do cérebro entra em modo masoquista, espatifando-me a tranquilidade. Gosto desta frase, repito-a imensas vezes para mim próprio e para os outros.
Às vezes tenho pesadelos com coisas que vão mesmo ocorrer e isso entolece-me. Na noite em que a minha querida mãe adotiva morreu, por exemplo, sonhei que estava a ser assassinada. De manhã descobri que aquilo tinha mesmo acontecido: uns ladrões, que nunca foram apanhados, entraram em casa enquanto dormíamos, roubaram as joias que ela guardava no quarto e cortaram-lhe a garganta. A única diferença é que no meu sonho o ladrão era eu e ao meu lado estavam o Stop e o Marcial. Lembro-me de que na noite anterior tinha tido um pesadelo com o galináceo mais famoso da história da humanidade: o frango Mike. O bicho faz parte da elite do manancial de personagens bizarras e violentas que edificaram o grande povo americano. O dono decepou a cabeça do animal para fazer uma patuscada de fim de semana, mas o desgraçado era daqueles que nunca aceitam aquilo que lhes querem dar, que neste caso era a morte, e continuou vivo e de boa saúde, tirando o facto de não ver, ouvir — há quem diga que ficou com uma das orelhas — e cheirar. Até penso que era mais feliz por não ter estas sensações, pois aquilo que entra pelos ouvidos, pelo nariz e pelos olhos de um pinto de capoeira ou de aviário está muito longe ser agradável. O resiliente descabeçado fez as delícias do sadismo jornalístico da época, sobrevivendo dezoito meses, esgravatando, duplicando o peso e fortalecendo a fortuna do dono, que o mimava com papinha de leite e cereais.  
Aquele fedorento continua a tocar! Vândalo, centopeia ranhosa, escroto murcho!
As premonições dos meus pesadelos são muito frequentes. Uma vez sonhei com a Madame Dimanche, uma aristocrata francesa do século dezanove a quem cresceu, a partir dos setenta e seis anos, um chifre que atingiu vinte e cinco centímetros de comprimento. O ser humano é, neste aspeto, muito semelhante ao rinoceronte: quando a pele decide destrambelhar-se a queratina eleva-se e forma preponderâncias corniformes pujantes. No meu sonho vi, claramente, o chifre da Madame Dimanche ser enfiado, abusivamente, no pescoço do meu vizinho idoso do 5.º andar, por um gatuno que lhe entrara no apartamento. No dia seguinte vim a saber que o velho fora mesmo assaltado e morto, com um pequeno chifre de rinoceronte espetado na traqueia, por causa de umas notas que tinha debaixo da mesa-de-cabeceira. A única diferença foi que no pesadelo era eu o gatuno homicida, mas isto é um pormenor.
Esta noite sonhei que estava a olhar-me ao espelho na casa de banho e que, de repente, me transformei no Marcial. Desviei os olhos, horrorizado, porque o meu primo é muito feio, mas quando tornei a fixar o vidro estava com a aparência do Padre — até me benzi, eu que nem sou religioso. Se foram premonições, o que irá acontecer? Será que eles  vão ter algum acidente? Deus queira que não, mas também não vou maçar a cabeça a pensar nisso, um é feio como um bafo de baleia e o outro é um criminoso disfarçado de santinho. Que se lixem!

Aquele javardo pestilento e focinhudo continua a tocar. Tenho de abrir. Maldito selvagem! 

domingo, 24 de janeiro de 2016

17. A FÉ MOVE MONTANHAS!

Sr. padre Tortulho

Na minha infância, o meu pai costumava dizer que a Fé movia montanhas. Dizia-o muitas vezes com uma expressão jocosa, como se não levasse muito a sério a sua própria afirmação. E quando tinha amigos lá em casa chamava-os à janela e as paredes estremeciam com a risota. Posso garantir aqui que, falasse ele convictamente ou não, o dito era totalmente verdadeiro. A Fé passava todos os dias no passeio do outro lado da rua e gerava, nos que a viam, uma enorme sensação de insólito, porque os seios que se movimentavam com ela eram verdadeiras montanhas, enormidades glandulares absolutamente desproporcionadas em relação ao seu corpo de sessenta quilos. Soube, muitos anos mais tarde, que afinal se tratava de excesso de prolatina.
Se nesse tempo aprendi a acreditar na exuberância da Fé, desiludi-me, por outro lado, com as virtudes do clero.
Certo dia apareceu na minha rua um cantoneiro, nem sei a que propósito, viu a madona peituda, arregalou os olhos e nunca mais de lá saiu. Era já um pouco idoso. Ficava à espera da passagem dela, encostado ao carrinho da limpeza, e quando a mulher inundava aqueles olhos raiados de vinho tinto ele arranjava coragem para lhe atirar sempre o mesmo piropo subentendido:
— Ai menina, quem me dera ser bebé!
A senhora nunca lhe respondeu, mas de vez em quando sorria e tal possibilidade mantinha a esperança do homem.
O responsável pela desilusão do limpador de ruas foi o Frei João, um dominicano que não vivia em clausura por ser arquitecto e ganhar dinheiro para a Ordem. Tinha liberdade para exercer a arquitectura e aproveitava-a para beber, comer, contar anedotas, confessar senhoras, dizer mal dos padres e praticar convívio com toda a espécie de gente. Ora o frade acabou por conhecer a Fé no confessionário da capela do Solar dos Falcões, junto do Teatro Gil Vicente, em Cascais, e empenhou-se com tanta intensidade em conhecê-la mais profundamente que resolveu fazer serviço ao domicílio. Tudo teria decorrido no mais virtuoso sigilo se o enamorado cantoneiro não tivesse encontrado coragem para se tornar mais afoito e não resolvesse ir guardar, de noite, a porta da sua opulenta amada. Como sabia que ela não tinha marido, ao ver um vulto sair rápido e sorrateiro por uma janela julgou tratar-se de um bandido e atacou-o selvaticamente, matando-o com o golpe de uma pedra numa das têmporas.
Desde esse tempo, senhor padre, desliguei-me do respeito pela Igreja. Entristeceu-me a sorte do cantoneiro. Em relação a si, li várias vezes a sua carta e concluí que me estava a ameaçar. Se isso é verdade, então o que eu disse ao Silveira também o é e o Sr. deve ser mesmo o mentor desse grupo. Custa-me, Sr. padre Tortulho, que o Silveira ande metido com vocês, porque até me parece bom homem. Mas não se preocupe, não vou divulgar a ninguém as minhas suspeitas, pode estar descansado. Aliás, vou continuar aqui no Alentejo mais algum tempo.

Espero que ganhem juízo e se arrependam do mal que fizeram.