Passou algum tempo
desde que relatei o episódio da morte do cómico gordo, no restaurante
Traquitanas, não se sabe se pela força das muitas bifanas ingeridas ou pelas
mãos de um qualquer homicida que se tenha enfiado, sorrateiramente, na casa de
banho fatídica para extinguir, de forma misteriosa, a comicidade hiperbólica do
desgraçado. O dedo acusador do Conde ou Lord ou Hugo Boss, como lhe queiram
chamar, disparou a culpa na direção e no sentido do padre Tortulho mas a
verdade é que, depois da autópsia, nenhum perito nas artes do retalhamento dos
corpos, foi capaz de decidir qual tinha sido a verdadeira causa da expiração
definitiva daquela alma, sobrecarregada, durante longos anos, pelo
avantajamento da massa adiposa. Talvez algum composto químico ainda
desconhecido, algum veneno imperceptível, escondido malevolamente nas catacumbas
do sagrado Vaticano, por herança das artes da cruel Locusta, que ajudava os
imperadores romanos a despacharem os seus antagonistas para a vida eterna, de modo
perfeitamente discreto. Por isso o padre, embora tenha passada uma noite na
cela a jogar paciências com cartas, a recitar em voz alta os ensinamentos
bíblicos e a pedir perdão para o Conde e o Abrantes, teve ordem de libertação
bem cedinho, por falta de paciência do juiz com a ausência de provas. Ainda
foi ministrar a missa da manhã na Igreja da paróquia. Consta que olhou com
grande desconfiança para o sangue de cristo, derramado, como era hábito, no
cálice de moscatel roxo de Setúbal com que realizava o sacramento.
O Firmo Formigal
discutiu com a Vera, a jovem médica-legista de olhos azuis como opalas, pele leitosa e cabelos cor de trigo,
bem como com a inspectora Zé Pereira, a ligação da arte dos venenos às mulheres,
ao império romano e à Santa Madre Igreja Católica e Apostólica. Contrariamente
às suas interlocutoras, que viam a origem de todo o mal na natureza masculina,
o filósofo polícia serviu-se da inesquecível envenenadora gaulesa, que migrou
para a cabeça do grande império e negociou mortes por encomenda com metade dos ricalhaços
de Roma, para justificar a influência feminina na proliferação da arte de matar
sem espalhafato. Locusta é, segundo o Firmo, a grande responsável pelo
desenvolvimento dos dois maiores poderes da história ocidental. Agripina e Nero
que o digam.
A dimensão feminina de Locusta encontra-se na importância do
número três, que é claramente o da mulher. Basta pensar na triangularidade maternal.
Na verdade, o três está também associado aos venenos através das necrópsias, para
não lhes chamar autópsias, pois não é o morto que se disseca a si próprio.
O Firmo sabe que a aplicação desta palavra é ideológica, está
contaminada pelo ideal socrático: ao abrir o corpo do morto o homem conhece-se
a si mesmo, descobre-se a partir das vísceras do outro. “Cada vez estou mais
convencido da natureza feminina dos ensinamentos de Sócrates” resmungou o Firmo.
Na técnica do exame dos mortos, que começou por se concentrar na procura de
indícios de venenos, são abertas as três cavidades relevantes do corpo humano:
a craniana, a torácica e a abdominal. As conclusões são óbvias: a Igreja
Romana, herdeira das artes de Locusta, tornou-se misógina para esconder o excesso
de sabedoria feminina, especialmente associada ao número três. Céu, purgatório
e inferno? Pai, Filho e Espírito Santo? Crucificação, ressurreição e ascensão?
Adão, Eva e serpente? Tudo isto evidencia, segundo o Firmo, o espírito feminino
da Santa Madre Igreja e a sua origem na indústria dos venenos. E se o padre
Tortulho não foi o envenenador deve ter andado lá muito perto!
— Sim, sim, nomeadamente isso! — Exclamou o Chefe Abrantes
que acabara de se sentar à mesa com eles, no café Tendinha.