sábado, 30 de junho de 2018

41 - A INDÚSTRIA DOS VENENOS E A SANTÍSSIMA TRINDADE


Passou algum tempo desde que relatei o episódio da morte do cómico gordo, no restaurante Traquitanas, não se sabe se pela força das muitas bifanas ingeridas ou pelas mãos de um qualquer homicida que se tenha enfiado, sorrateiramente, na casa de banho fatídica para extinguir, de forma misteriosa, a comicidade hiperbólica do desgraçado. O dedo acusador do Conde ou Lord ou Hugo Boss, como lhe queiram chamar, disparou a culpa na direção e no sentido do padre Tortulho mas a verdade é que, depois da autópsia, nenhum perito nas artes do retalhamento dos corpos, foi capaz de decidir qual tinha sido a verdadeira causa da expiração definitiva daquela alma, sobrecarregada, durante longos anos, pelo avantajamento da massa adiposa. Talvez algum composto químico ainda desconhecido, algum veneno imperceptível, escondido malevolamente nas catacumbas do sagrado Vaticano, por herança das artes da cruel Locusta, que ajudava os imperadores romanos a despacharem os seus antagonistas para a vida eterna, de modo perfeitamente discreto. Por isso o padre, embora tenha passada uma noite na cela a jogar paciências com cartas, a recitar em voz alta os ensinamentos bíblicos e a pedir perdão para o Conde e o Abrantes, teve ordem de libertação bem cedinho, por falta de paciência do juiz com a ausência de provas. Ainda foi ministrar a missa da manhã na Igreja da paróquia. Consta que olhou com grande desconfiança para o sangue de cristo, derramado, como era hábito, no cálice de moscatel roxo de Setúbal com que realizava o sacramento.
O Firmo Formigal discutiu com a Vera, a jovem médica-legista de olhos azuis como opalas, pele leitosa e cabelos cor de trigo, bem como com a inspectora Zé Pereira, a ligação da arte dos venenos às mulheres, ao império romano e à Santa Madre Igreja Católica e Apostólica. Contrariamente às suas interlocutoras, que viam a origem de todo o mal na natureza masculina, o filósofo polícia serviu-se da inesquecível envenenadora gaulesa, que migrou para a cabeça do grande império e negociou mortes por encomenda com metade dos ricalhaços de Roma, para justificar a influência feminina na proliferação da arte de matar sem espalhafato. Locusta é, segundo o Firmo, a grande responsável pelo desenvolvimento dos dois maiores poderes da história ocidental. Agripina e Nero que o digam.
A dimensão feminina de Locusta encontra-se na importância do número três, que é claramente o da mulher. Basta pensar na triangularidade maternal. Na verdade, o três está também associado aos venenos através das necrópsias, para não lhes chamar autópsias, pois não é o morto que se disseca a si próprio.
O Firmo sabe que a aplicação desta palavra é ideológica, está contaminada pelo ideal socrático: ao abrir o corpo do morto o homem conhece-se a si mesmo, descobre-se a partir das vísceras do outro. “Cada vez estou mais convencido da natureza feminina dos ensinamentos de Sócrates” resmungou o Firmo. Na técnica do exame dos mortos, que começou por se concentrar na procura de indícios de venenos, são abertas as três cavidades relevantes do corpo humano: a craniana, a torácica e a abdominal. As conclusões são óbvias: a Igreja Romana, herdeira das artes de Locusta, tornou-se misógina para esconder o excesso de sabedoria feminina, especialmente associada ao número três. Céu, purgatório e inferno? Pai, Filho e Espírito Santo? Crucificação, ressurreição e ascensão? Adão, Eva e serpente? Tudo isto evidencia, segundo o Firmo, o espírito feminino da Santa Madre Igreja e a sua origem na indústria dos venenos. E se o padre Tortulho não foi o envenenador deve ter andado lá muito perto!
— Sim, sim, nomeadamente isso! — Exclamou o Chefe Abrantes que acabara de se sentar à mesa com eles, no café Tendinha.