domingo, 27 de setembro de 2015

11. ... E UM CRIME


     - Já te falei do crime? - prosseguiu o Silveira. - Não um crime qualquer: um assassinato. A viúva sobreviveu ao seu marido não mais do que uns 5 anos. Faz-lhe as contas! O irmão do Davoud teria os seus 18, o Davoud era um pouco mais novo. O Marcial, por aí. Queixavam-se muito; sobretudo ao Padre; e a mim: que a velha os perseguia, que lhes aparecia à noite e os acordava para orações e exames de consciência, que não lhes dava dinheiro para nada, queria que jejuassem e castigassem os corpos. Castigar-lhes os corpos pecadores! Àqueles rapagões, precisamente na idade em que olhavam para as raparigas em minissaia e em bikini, e furtavam revistas pornográficas, e nada mais havia na sua mente senão mulheres, mulheres, mulheres! E sabes o que é o pior de tudo? A viúva queria fazer de Davoud um santo. O sinal, que me vens agora contar que era a viola do pai, aos olhos da viúva era o rosto de Cristo chapadinho! É verdade que nessa altura apareceram nas mãos do Davoud umas feridas estranhas, ensaguentadas - que os outros sabiam que se deveria ao excesso de masturbação, mas a mulher empreendeu que eram uma reprodução das chagas de Cristo! Desculpa se te choco, não tinha essa intenção. Enfim, a mulher encontrava em Davoud uma série de milagres equívocos. Só é pena que o puto se portasse tão mal. E uma manhã, apareceu morta. Nem sei como, disse-se tanta coisa. Degolada, tanto quanto me lembro. Mas evidentemente, só eu e o Padre pensámos que eles fossem suspeitos. Ou um deles. Ou dois deles. Ou os três. Com certeza absoluta.
     - Mau Deus! - tartamudeei.
     - Dizes bem. E talvez pensassem que ficavam com os bens dela, mas aí enganaram-se. Não eram oficialmente ainda adoptados, de maneira que apareceram os parentes nobres, uns abutres... Enfim, tens aí a história! O Davoud desapareceu por uns tempos, pensou-se que de desgosto!, e quando voltou já vinha com uma ucraniana atrelada, e os primeiros filhos. Tu vês mesmo ali uma viola? A sério? A mim parece mais um embondeiro!

sábado, 26 de setembro de 2015

10. THE MISSING LINK


     - Pois, é, meu caro - respondeu o Silveira. - Não duvido da tua história. É aliás extraordinária, e os pormenores mostram que não há aí nenhum embuste. O problema é que precisaríamos, então, de encontrar o «missing link», quero eu dizer a ponte que leva do «David» ao «Davoud», a passagem que explicaria essa transformação. Porque eu conheci o pai dele no Irão, aonde estive nos anos 80 como repórter. Era um homem que, apesar das suas três esposas, não tinha, à altura, qualquer filho. O que muito o entristecia. Tornámo-nos bons amigos. Era o meu guia. Oferecia-me chá e levava-me a sítios que nenhum estrangeiro alguma vez tocou. Mas os ansiados filhos deverão ter nascido entretanto, com um intervalo curto entre si, isto é, pensava eu que seriam seus filhos até tu lançares essa dúvida; porque o certo é que no fim dos anos 90 eu tinha dois jovens, um de uns 10 anos, outro de cerca de 14, surdo-mudo, à minha porta, em Lisboa, na Almirante Reis onde então vivia, com uma carta do pai, escrita em belíssimo português, que teimara em aprender desde que me conhecera e ensinara ao filho. Pedia-me encarecidamente que velasse pelos meninos, que lhes desse um futuro qualquer no, escrevia o tipo, «abençoado Portugal».

     Falei com o senhor Padre. O senhor Padre, que era um homem moderno, já usava computador e duche quando a maioria dos portugueses ainda olhava para isso com alguma desconfiança, e até fumava, acolheu os meninos e não descansou enquanto não lhes encontrou uma protectora, uma paroquiana dedicada, daquelas que catequizam crianças, arrumam o altar, fazem leituras na missa; mas não só: esta senhora, que era nobre e riquíssima - apesar de um marido ateu e convictamente anti-clerical - doava grandes quantidades de dinheiro para benefício da igreja. «Arruína-me por causa da padralhada!», queixava-se o marido, raro e paradoxal monárquico ateu.  
    
      A velhota era ríspida. Era rígida. E rija: aos 80 anos, nada de corcundas nem de achaques. Queria ganhar o céu através dos três meninos.
     - Três? - perguntei.
     - Sim. Ela já tinha à sua guarda o Marcial. Dava-lhes pequeno-almoço, almoço e jantar. Iam juntos à missa. Pô-los a estudar. O Davoud aprendia português a olhos vistos. (Se a tua história faz sentido, o farsante era português... mas que coisa!) O velho não aguentou. Morreu de um rebentamento na cabeça uma manhã de sol. Mas o pior veio depois. Penso que estás a par do resto da história!?