quarta-feira, 23 de dezembro de 2015
16. MAIL
Meu caro senhor:
Acabo de ler o mail que o senhor enviou ao Silveira - o Silveira e eu somos velhos amigos, mas ele sofre de perturbações mentais, tem delírios, faz despesas que se esquece de pagar, e por aí fora, portanto não é surpreendente que eu fosse autorizado (mas autorizado a sério, com assinatura reconhecida pelo notário) a controlar-lhe a correspondência.
Sou o Padre João de Jesus.
Pelo que percebi do seu mail, o Silveira tem andado a contar-lhe histórias muito sinistras. Coitado. É bom moço, mas a cabeça é que não bate certo. Ele é amigo do Davoud, mas de vez em quando mete-se-lhe na caixa dos pirolitos que o Davoud é um assassino. Pelo visto, eu também seria parte na comandita. Parte!? Segundo a história, seria até o cérebro. Meu caro amigo. Não acredite em patranhas do Silveira. Veja mas é se ele não lhe fica a dever dinheiro. Os seus lapsos são já muito conhecidos no bairro.
Quero aproveitar para lhe dizer que o Davoud também não é quem o senhor pensa. Aqui há tempo, numa conversa muito estranha e cheia de trapalhadas, o Silveira afiançava-me que o senhor lhe tinha dito que o Davoud seria o filho de um amigo seu que emigrara para Paris. Impossível. Pensei que o senhor também fosse maluquinho, porque na história do Silveira (sua, portanto) entravam já extra-terrestres e parece que uma senhora de cabelos molhados. Quando li agora o seu mail é que as coisas começaram a encaixar. Mas fazendo pouco sentido! Só me saem duques, com perdão da expressão pouco cristã...
Gostava de lhe falar a bem, porque os meus caminhos são os que me indica o Altíssimo, e outros não tenho. Faço o Bem sem olhar a quem! Mas gostava de lhe pedir que não se pusesse com investigações nem manias, porque, entenda, o Silveira sofre de delírios, tem ataques, e o Davoud, por outro lado, também tem um feitio... complicado!
Não há velha nem velhinha nem velhona. Ninguém assassinou ninguém!
Meta-se na sua vida.
Passar bem.
Seu,
Padre João de Jesus
segunda-feira, 7 de dezembro de 2015
15. TRÊS PORQUINHOS E UM PADRE
Que raio de confusão,
Silveira! Não posso acreditar que tenham mesmo assassinado a idosa. Estou a
escrever-te isto no facebook porque vim de férias uns dias, a Serpa. Se calhar
esta até é a melhor forma de comunicarmos, pois o que me confessaste é indesculpável
e não me apetece nada voltar a ver-te. Brinco, até porque não acredito totalmente
nessa história, se correspondesse à realidade tu não ma ias dar a conhecer,
guardava-la bem guardada. Vai-te lixar, cabeça de sachola, pedregulho musgoso,
pivete encardido! Porém, a tua lengalenga espevitou a minha curiosidade acerca
do Padre. Que diabo de sacerdote é que resfolega ali? Fui pesquisar páginas no
facebook e encontrei a dele. Tem o nome de Adolfo Tortulho. Adolfo Tortulho?
Não dá para acreditar! O certo é que eu conheci uma família com este apelido,
em Cascais, na minha adolescência. Deves estar a pensar “Mas este carapau de
corrida, esta tíbia sem perónio, acha que conhece toda a gente?” Podes crer que
sim. O apelido chegou a esta família pela via de uma alcunha baseada numa
caraterística física: o nariz. O avô esteve na origem, porque tinha a penca com
o formato de um enorme cogumelo, daqueles comestíveis, muito maior do que a do saudoso
cascalense Mário Clarel, que ajudava as pessoas a preencherem formulários e ostentava
uma bicanca redonda da família das cactáceas. O sacana do funcionário do registo,
que conhecia o avô Tortulho, recebeu uma gorjeta dos amigos e colocou-lhe a
alcunha no nome do filho mais velho, sem ele dar por isso. Todos os descendentes
acabaram por se resignar e, com o passar do tempo e o avolumar da ignorância
citadina sobre os fungos, começaram até a encontrar no termo um certo laivo de
aristocracia e de estrangeirice.
Os tortulhos viviam numa
rua próxima do Museu do Mar, ao lado do café “Os Três Porquinhos”, onde se
juntava uma fauna humana numerosa e barulhenta para comer bifes de cebolada e
beber vinho caseiro que jorrava de um pipo. A enorme frigideira adensava o
molho durante um mês, mas ele tornava-se tão pastoso que tinha de ser mudado.
Nos dias em que a frigideira era lavada, os clientes berravam de desprazer e
vituperavam a cozinheira por causa da falta de tempero da carne.
— O que é que querem? —
Respondia ela, encolhendo os ombros. — Já sabem que tenho de lavar isto todos
meses.
Sempre julguei que os três
porquinhos eram os donos do café: o pai, a mãe e o filho, um adolescente muito
esquelético, que às vezes introduzia rapidamente o dedo indicador da mão esquerda
na frigideira e o chupava para dizer aos clientes que o molho estava perfeito.
Tenho quase a certeza de que
o padre é o neto do avô Tortulho. Lembro-me de o ver e tinha um ar assaz esquisito.
Era meio esgrouviado e às vezes ficava a olhar muito tempo para as pessoas,
como se estivesse a imaginá-las em situações extravagantes. É possível que o
ácido sulfúrico derivado das toneladas de cebola que todos os anos acompanhavam
a fritura dos bifes do café “Os Três
Porquinhos” tenha corroído o juízo da vizinhança, especialmente o moral, e
o rapaz se tenha tornado um trafulha e um assassino. Sei que andou num
seminário e isso é demasiada coincidência. A página do Facebook está cheia de
fulanos musculados e peludos, com tatuagens e argolas. Também reparei que se
corresponde com muitas amigas com nomes tipo skype. Embora no seu perfil esteja
uma frase a dizer “Amigo de todos os que são escorraçados, pois Deus é paz e
guarida”, descobri que tem um link que direciona para um site sobre armas, em
inglês.
Vai lá lá vai, com a
companhia, amigo Silveira! Não queiras dar um cheirinho no travão! Mas não
tenhas problemas, não sou delator e até fico curioso com a tua história. Conta
lá, esmiúça tudo o que sabes.
domingo, 29 de novembro de 2015
14. BALANÇO
Ai eu é que te arranjo problemas!? Malandro! Corsário! Filho de um canário amarelo! Medicamento sem bula! Míssil teleguiado sem comando! - irritou-se o Silveira. - Caramba - continuou ele. - Topas tudo à légua! E desmanchas-me como num passe de magia! Está bem, está bem, a minha história era em parte inventada! Ando a construí-la a meias com o Davoud - a ideia é fazer um guião para a TV. O Davoud acha que devíamos testar a sua credibilidade começando a espalhá-la como sendo verídica. As ideias são todas... nem vais imaginar... segura-te, que até cais para o lado... dele? Não! Do Padre, meu! Do Padre! O Padre é delirante, é um inventor e um manipulador tramado. Nem sei se será mesmo padre. Nunca tinha visto um padre viciado no facebook. Eu, repórter de guerra!? Tens razão, topaste-me logo meu filho da mãe. Nem é só a idade não bater certo com a história. É a coragem bater ainda menos certo! Alguma vez, eu sozinho, a espreitar pela janela de um hotel já meio em ruínas, entre bombardeamentos a aproximar-se e snipers a fazer pontaria dos telhados? Mas olha, tu tens histórias, pá. Essa coisa dos OVNIS, e tal, isso tem piada, tem garra. Talvez pudesses entrar na equipa. Inventarmos uma grande história com iranianos, marcianos, ex-namoradas... o quê? Não te queres meter com o Padre? Com o Davoud muito menos? Eu compreendo que não te queiras meter com o Davoud, pá. Uma coisa naquilo que eu contei é absolutamente verdade. O tipo e o mudo deram cabo da velha rica! Agora entre nós, vou revelar-te um segredo. O Padre é que foi o cérebro do plano. O Padre é perigoso. Hã? Por que é que te estou a contar tudo isto? Olha, a razão é só uma. Porque estou borrado de medo. Agora vê lá o que fazes. Sobretudo, não me desmintas. Agora não venhas dizer que isto não bate certo, que te estou a aldrabar, e a inflectir a história por outra montanha qualquer. Em todo o caso, estás avisado. Não te metas com o Padre! Não te metas com o Davoud! E não te metas comigo, meu amigo desnaturado! Meu herói de trazer por casa! Constipado! Alienígena! Papa-tremoços! Fogooooo!
sábado, 7 de novembro de 2015
13. O NASCIMENTO DAS ESPLANADAS EM CASCAIS
Duas
semanas depois do aparecimento do Ovni, o largo onde haviam colocado a estátua
de Camões, em Cascais, e que ficou conhecido pelo nome do poeta dos oxímoros,
transformou-se por completo, ganhando uma vivacidade nunca antes imaginada. Até
aí, os bares e as pastelarias que circundavam a praça trancavam-se no seu
interior, não lhes passando pela ideia a mínima suspeita de que podiam expandir-se
muito para além das portas, aproveitar a calçada portuguesa e o bom clima e
seduzir as gargantas e as carteiras de uma multidão sedenta do convívio
noturno.
Os
dois pubs mais conhecidos até à data
estavam ligados à inglesada, como revelavam os nomes: Jonh Bull e Beefeater. O
primeiro tinha um restaurante no piso superior, se bem me lembro, e era mais
conhecido por servir um bom bife de carne do lombo, cozinhado numa caçarola de
cobre e coberto com um molho de natas, apimentado. O segundo era decorado com
estofos coloridos, julgo que avermelhados, e estes tinham tanto fumo de tabaco
entranhado que apenas não padeciam de doença cancerosa por não possuírem
pulmões. Circulava por ele imensa cerveja, scotch, gin e cabeças a desviarem-se
de setas que fendiam o ar, atiradas para um alvo por clientes fanáticos do jogo.
Quinze
dias depois do espectáculo do objeto voador não identificado, dois iranianos
tomaram posse do Canal7, um bar sem história, adormecido ao lado do Jonh Bull, e
revolucionaram a praça. A receita foi simples: semear cadeiras e mesas pelo
largo, até aos pés da estátua de Camões, e ver como delas germinavam corpos de
todas as origens e feitios a fazerem escorrer cerveja pelas goelas até de
madrugada. Na noite em que abriu fui lá com a Angélica, que no final da noite
me garantiu que voltara a ver o OVNI, mas confesso que eu tinha bebido tanto
que não dei por nada.
O
impacto dos irmãos persas foi tamanho que rapidamente cresceu a lenda de que
havia sido a nave espacial a trazê-los, o que era quase o mesmo que dizer que, afinal, não eram exilados da revolução iraniana mas sim criaturas alienígenas. O mais
velho era bem nutrido de carnes e de bigode. O mais novo era alto, magro e
encurvado. Falo neles porque tenho pensado muito nesta questão dos pais do
Davoud e lembrei-me de um pormenor interessante: num dos fins de semana em
Versailles, o amigo do Pompílio falou num iraniano que vivia em Cascais e costumava
visitar o cônsul. Pela descrição que me fez, tenho andado a cogitar se não
seria o mais velho dos irmãos, e se não terá sido ele a trazer o Davoud para a região, depois do acidente que vitimou o casal de Aveiro.
Arranjas-me cada problema! Que raio de confusão, Silveira!
sábado, 24 de outubro de 2015
12. O OVNI QUE TROUXE OS IRANIANOS
Espera
lá, Silveira, agora fez-se luz nesta cabeça de abóbora de cabelo desgrenhado
que costumo carregar sobre o pescoço. Porque é que não pensei nisto há mais
tempo?! A tua história não é temporalmente aceitável. Tu és cota, mas não tanto.
És até mais novo do que eu. Por isso não podias ter conhecido o pai do Davoud
antes de este nascer e já seres repórter nesse tempo. Que diabo, em 1980,
quando estive em Paris, terias vinte anos. Foi há trinta e cinco. O Davoud já
tem mais de quarenta. Ou estás a brincar comigo ou a tentar desviar-me a
atenção. Vá lá, não faças de mim parvo! De qualquer modo, existe de facto uma relação com outros iranianos.
Esse
verão foi um marco na minha existência. Por isso recordo todos os pormenores ligados
a esse período. Antes da viagem, por exemplo. Arranjei uma namorada a quem
disse que me chamava Segismundo. Ela acreditou. Fiz uma aposta com o Cortes em
como conseguia seduzi-la. Saímos várias noites, incluindo aquela em que dizem
ter aparecido um ovni por cima da baía. Posso garantir que foi verdade, pois
estava com essa namorada, a Angélica, e vimo-lo perfeitamente. Ela saiu de
Cascais nesse verão, para a Figueira, salvo erro, e quando regressei de França
já não a vi. Mas há cerca de um mês, estava eu a ler o Cascais Magazine, numa
edição dedicada a essa aparição do objeto voador não identificado, em 1980,
quando deparei com o testemunho escrito dessa minha acompanhante. Fiquei
extasiado pelo facto de saber que ainda faço parte das suas memórias, embora
não conheça mais nada dela. Tirei duas cópias ao texto. Toma, lê, depois
explico-te a relação com outros iranianos.
"Lembro-me bem da noite do OVNI.
A evocação dos estranhos eventos que
ocorreram nessa data, tão insólitos como faiscantes, entranhou-se
avassaladoramente no meu referente de existência e acometeu, ao longo destes
anos, os lampejos mais fortes da minha consciência.
Era novinha, quase adolescente. Tinha
vinte anos de fulgor e ingenuidade. Estava ainda deliciada com as pequenas
descobertas e esperanças típicas das raparigas que não conseguem estancar o
rubor, diante dos piropos dos rapazes mais atrevidos.
Era muito púdica. Ainda hoje o sou,
mas nessa idade atingia os píncaros do exagero. A moral católica, que me
entrara no corpo e na mente durante a inteireza da infância, enquanto me
ajoelhava, sem pausa, nos bancos da Igreja Matriz, fizera de mim um projeto de
mulher repleto do sentido do meu nome: Angélica.
Depois de estar algum tempo na
esplanada do Hotel Baía, com o meu namorado recente, o Segismundo, fui jantar
com ele ao restaurante D. Pedro I, ali nas escadinhas que subiam na lateral do
antigo quartel dos bombeiros. Passávamos a estátua oxidada do rei justiceiro e
lá estava ele, o comedouro dos jovens e dos menos abonados. Pedimos costeletas
grelhadas, de novilho, com batata frita. Não havia sítio nenhum com tanta
qualidade por tão baixo preço. Embora não tivéssemos problemas em pagar mais
por uma refeição, ir ali dava-nos uma certa aura de juventude despretensiosa.
Depois do jantar fomos até ao
marégrafo. O mar estava plácido, o ar tépido, as estrelas desejosas de nos
acompanhar, os ânimos quentes… As proteínas e os hidratos do repasto
atafulhavam tanto os espaços gástricos que os corações pareciam ser obrigados a
deslocar-se em direção aos lábios, e sabem o que acontece aos corações quando estão
próximos das bocas: as mucosas tornam-se mais sanguíneas, dilatadas, erógenas,
brota nelas um desejo irrefreável de lábios e de pele.
Segismundo avançou na exploração do
meu corpo, como um aventureiro intrépido, puxando-me para ele com afoiteza
experimentada. Eu alternava os gemidos prazerosos com negações sensatas de
menina de bem. Estávamos mesmo na ponta do passeio, numa zona pouco iluminada,
encostados à muralha da cidadela.
— Vem ali o quebra ossos! — Exclamou
de repente o Segismundo.
E era verdade. Tratava-se de um
argentino, dono do bar La Pulperia, que tinha enorme deleite em massacrar o
mais possível as mãos daqueles a quem cumprimentava, apertando-as até às
lágrimas. Diziam que não trocava este prazer por nenhum outro, incluindo o do
sexo.
Com a desculpa de que não queria ter
as mãos esmifradas pelo compulsivo sul-americano, cujo bar fechava nesse dia, o
meu amor levou-me a descer as escadas do marégrafo e a aceder à passagem
estreita, sobre as rochas que faziam a separação entre a fortaleza e a água
salgada. Aí, sem vivalma que se fizesse notar, encostou-me à muralha e
recomeçou as suas atividades exploratórias do meu corpo. Beijou-me, sugou-me,
colou-se, puxou-me, enlaçou-me, enroscou-se…
Foi então que surgiu o OVNI. Era
imenso e redondo e encheu o meu olhar. O tom avermelhado e luzidio da sua parte
central produziu em mim um impacto tão forte que soltei um grito, entre o medo
e o espanto. Esteve ali sob as estrelas, não sei por quanto tempo. Pareceu-me
uma eternidade. E embora digam que se afastou em direção ao mar eu fiquei com a
ideia de que ele regressou diversas vezes, antes de se afastar definitivamente.
Nunca, por mais anos que viva,
esquecerei aquele objeto misterioso, que assistiu à minha primeira noite de
amor e me deixou a cabeça povoada de estrelas e de viagens espaciais.
Este é, de facto, o meu Cascais Menino.”
domingo, 27 de setembro de 2015
11. ... E UM CRIME
- Já te falei do crime? - prosseguiu o Silveira. - Não um crime qualquer: um assassinato. A viúva sobreviveu ao seu marido não mais do que uns 5 anos. Faz-lhe as contas! O irmão do Davoud teria os seus 18, o Davoud era um pouco mais novo. O Marcial, por aí. Queixavam-se muito; sobretudo ao Padre; e a mim: que a velha os perseguia, que lhes aparecia à noite e os acordava para orações e exames de consciência, que não lhes dava dinheiro para nada, queria que jejuassem e castigassem os corpos. Castigar-lhes os corpos pecadores! Àqueles rapagões, precisamente na idade em que olhavam para as raparigas em minissaia e em bikini, e furtavam revistas pornográficas, e nada mais havia na sua mente senão mulheres, mulheres, mulheres! E sabes o que é o pior de tudo? A viúva queria fazer de Davoud um santo. O sinal, que me vens agora contar que era a viola do pai, aos olhos da viúva era o rosto de Cristo chapadinho! É verdade que nessa altura apareceram nas mãos do Davoud umas feridas estranhas, ensaguentadas - que os outros sabiam que se deveria ao excesso de masturbação, mas a mulher empreendeu que eram uma reprodução das chagas de Cristo! Desculpa se te choco, não tinha essa intenção. Enfim, a mulher encontrava em Davoud uma série de milagres equívocos. Só é pena que o puto se portasse tão mal. E uma manhã, apareceu morta. Nem sei como, disse-se tanta coisa. Degolada, tanto quanto me lembro. Mas evidentemente, só eu e o Padre pensámos que eles fossem suspeitos. Ou um deles. Ou dois deles. Ou os três. Com certeza absoluta.
- Mau Deus! - tartamudeei.
- Dizes bem. E talvez pensassem que ficavam com os bens dela, mas aí enganaram-se. Não eram oficialmente ainda adoptados, de maneira que apareceram os parentes nobres, uns abutres... Enfim, tens aí a história! O Davoud desapareceu por uns tempos, pensou-se que de desgosto!, e quando voltou já vinha com uma ucraniana atrelada, e os primeiros filhos. Tu vês mesmo ali uma viola? A sério? A mim parece mais um embondeiro!
sábado, 26 de setembro de 2015
10. THE MISSING LINK
- Pois, é, meu caro - respondeu o Silveira. - Não duvido da tua história. É aliás extraordinária, e os pormenores mostram que não há aí nenhum embuste. O problema é que precisaríamos, então, de encontrar o «missing link», quero eu dizer a ponte que leva do «David» ao «Davoud», a passagem que explicaria essa transformação. Porque eu conheci o pai dele no Irão, aonde estive nos anos 80 como repórter. Era um homem que, apesar das suas três esposas, não tinha, à altura, qualquer filho. O que muito o entristecia. Tornámo-nos bons amigos. Era o meu guia. Oferecia-me chá e levava-me a sítios que nenhum estrangeiro alguma vez tocou. Mas os ansiados filhos deverão ter nascido entretanto, com um intervalo curto entre si, isto é, pensava eu que seriam seus filhos até tu lançares essa dúvida; porque o certo é que no fim dos anos 90 eu tinha dois jovens, um de uns 10 anos, outro de cerca de 14, surdo-mudo, à minha porta, em Lisboa, na Almirante Reis onde então vivia, com uma carta do pai, escrita em belíssimo português, que teimara em aprender desde que me conhecera e ensinara ao filho. Pedia-me encarecidamente que velasse pelos meninos, que lhes desse um futuro qualquer no, escrevia o tipo, «abençoado Portugal».
Falei com o senhor Padre. O senhor Padre, que era um homem moderno, já usava computador e duche quando a maioria dos portugueses ainda olhava para isso com alguma desconfiança, e até fumava, acolheu os meninos e não descansou enquanto não lhes encontrou uma protectora, uma paroquiana dedicada, daquelas que catequizam crianças, arrumam o altar, fazem leituras na missa; mas não só: esta senhora, que era nobre e riquíssima - apesar de um marido ateu e convictamente anti-clerical - doava grandes quantidades de dinheiro para benefício da igreja. «Arruína-me por causa da padralhada!», queixava-se o marido, raro e paradoxal monárquico ateu.
A velhota era ríspida. Era rígida. E rija: aos 80 anos, nada de corcundas nem de achaques. Queria ganhar o céu através dos três meninos.
- Três? - perguntei.
- Sim. Ela já tinha à sua guarda o Marcial. Dava-lhes pequeno-almoço, almoço e jantar. Iam juntos à missa. Pô-los a estudar. O Davoud aprendia português a olhos vistos. (Se a tua história faz sentido, o farsante era português... mas que coisa!) O velho não aguentou. Morreu de um rebentamento na cabeça uma manhã de sol. Mas o pior veio depois. Penso que estás a par do resto da história!?
quarta-feira, 12 de agosto de 2015
9. A MINHA VIDA EM CASA DOS PAIS DO DAVOUD
Posso dizer que o
Pompílio e a Iracema, emigrantes de Aveiro, foram a nossa salvação. Já me
estava a ver sem dinheiro, em Paris, e sem saber o que fazer à vida. Eles
acolheram-nos em casa, trataram-nos como se fôssemos família chegada, arranjaram-nos,
inclusivamente, um trabalho durante um mês, levaram-nos a passear por todo o
norte de França… Não tenho palavras para exprimir o meu enorme reconhecimento.
Ele era, como já disse, um homenzarrão, teria trinta anos, meio arruivado, a
barba com cerca de dez centímetros, com uma figura simultaneamente jovial e
imponente que incutia nos outros um certo temor de o ver colérico. Ela era
pequena, viva como a sardinha, segundo se dizia na altura, bonita, de cara
redondinha, com uma inegável propensão para a sociabilidade mas, ao mesmo
tempo, com uma necessidade imperiosa de embirrar com o marido. Todos os dias
lhe triturava diversas vezes o juízo, por minudências desprezíveis,
assanhando-se contra ele como uma gata, enfrentando-lhe a irritação até que,
repentinamente, ele a agarrava, a punha ao colo e dizia “É por isso que não posso
estar sem ela, é a única pessoa que me faz sentir pequenino!”, levava-a
pendurada ao pescoço para o quarto e faziam amor. Ninguém consegue imaginar
quantas vezes o faziam.
O casal de Aveiro tinha
dois filhos, uma menina ruiva, de olhos azuis como os do pai, que se chamava
Mariana e teria cerca de dois anos e um rapaz com três anos, de cabelo castanho
e ar introvertido, que olhava com curiosidade para as coisas mas também de
forma enigmática, nunca percebíamos o que se estava a passar naquele cérebro.
David, assim se chamava ele, tinha no pescoço um sinal em forma de guitarra que
era o orgulho do pai, este mostrava-o a toda a gente e afirmava que fora a sua
enorme veia artística de tocador do referido instrumento que originara aquela
marca no filho. A fama do miúdo alastrou de tal modo que certo dia apareceu lá
uma equipa da televisão para fazer uma reportagem. O título foi qualquer coisa
parecida com “Filho nasce com a figura da guitarra do pai no pescoço”
Durante o mês de agosto o
Pompílio arranjou-me um emprego como substituto de uma concierge que estava de férias. As minhas tarefas consistiam apenas
em manter as escadas e os corredores do prédio em questão razoavelmente limpos,
sem papéis, beatas, marcas de patas de cão, nódoas e ajuntamentos de pó. No
início levei a minha responsabilidade ao extremo, limpando tudo exaustivamente
e cumprindo o horário. Depois, um argelino dono de um minimercado que existia no
rés-do-chão do prédio, começou a rir-se do meu zelo e ensinou-me a dormir
deitado em três cadeiras na arrecadação das limpezas. Comecei também,
pressionado pelos meus anfitriões, a largar o serviço às três da tarde, mas embora
eles quisessem que o fizesse à hora do almoço nunca fui capaz de tal mandronguice.
Aos fins de semana,
durante o mês de agosto, íamos para a casa do cônsul americano em Versailles,
porque este estava de férias nos EUA e era um casal amigo do Pompílio e da
Iracema que tratava da propriedade, vivendo mesmo numa das várias casas que
esta possuía. Comíamos tanto e tantas coisas que já não tínhamos barrigas mas
sim bandulhos e o sangue parecia ficar muito mais fluído com a ingestão de Ricard
e cerveja, de tal forma que à noite, no salão da casa principal, o meu
cérebro pairava muito acima da cabeça enquanto eu rodopiava nos braços da
Iracema, ao som de músicas populares tocadas pela guitarra do Pompílio e pela
concertina do amigo, também ele de Aveiro.
Ai Silveira, é por isso que
eu nunca dirigi a palavra ao Davoud. Cumprimentei-o várias vezes, mas é-me
doloroso pensar na tragédia que aconteceu aos pais, nesse mesmo verão, no final
de setembro, quando regressavam de Portugal e foram abalroados, numa estrada
espanhola, por um camião. Apenas escapou o miúdo, o David, que foi depois
adotado não sei por quem e que agora diz chamar-se Davoud, que nunca teve
nenhum irmão nem pais estrangeiros, a não ser que fossem os adotivos, isso já
eu não sei.
domingo, 9 de agosto de 2015
8. UMA MULHER DE CABELO A ESCORRER, UNS JEANS SEBENTOS, UM TUBERCULOSO VEGETARIANO E A FIGURA DE ZEUS.
O apartamento da Madalena
e do seu namorado turco tinha uma sala grande que dava diretamente para a porta
de entrada, três quartos, uma cozinha, uma casa de banho, um cheiro muito
esquisito que se entranhava na pele, o Cortes dizia que era uma mistura de odor
de freaks com vapores de haxixe, barulho infernal a entrar pelas frinchas das
janelas a qualquer hora do dia e da noite e uma passagem ininterrupta de
visitantes oriundos dos mais diversos lugares e portadores das mais palpitantes
esquisitices.
Parecia que meio mundo
tinha a chave da casa. Os visitantes entravam a qualquer hora e, em regra, não
ficavam mais do que um dia. O único frequentador quase permanente, além de nós,
era um belga chamado Patrick, que apenas se ausentava para ir buscar
carregamentos de haxe à fronteira, pois tratava-se de um dealer de excelente
reputação. Era um local relativamente perigoso, mas cheio de episódios
interessantes. Lembro-me de dois holandeses que vestiam sempre os mesmos jeans,
há meses, e que quando os tiraram para dormir estes ficaram em pé, lado a lado,
à espera dos donos na verticalidade, pois a sujidade sebosa que se entranhara
neles entesava-os de tal modo que não os deixava tombar. Recordo-me de um rapaz
com cerca de 10 anos de idade a olhar para nós enquanto comíamos um frango e a
gritar que éramos carnívoros e que por isso iríamos morrer muito cedo, o pai
dele não comia carne, só vegetais, tofu, seitan, rebentos de tudo e mais alguma
coisa, e por isso tinha muita força, era o homem mais forte do mundo. Alguém nos
disse, no dia seguinte, que o referido pai estava tuberculoso.
No apartamento em frente
ao nosso vivia uma mulher ainda nova e até bonita, mas que apresentava um
comportamento também digno de registo. Todos os dias batia à nossa porta, abríamos
e ela entrava, com o cabelo muito comprido e a escorrer água, “La télé? Elle fonctionne?” perguntava ela,
dava uma volta pela sala, nós não tínhamos televisão nenhuma, “Non, elle
fonctionne pas!” concluía pesarosamente, encaminhava-se para a porta e saía.
Podia ficar aqui a tarde
toda a contar as nossas experiências incríveis nessa casa, mas vou avançar para
o que interessa. Um dia andávamos a passear no Jardin du Luxembourg quando um homem ainda novo, de estatura
poderosa, com uma barba imponente e uma voz possante, ainda hoje me faz lembrar
a figura de Zeus, estacou à nossa frente e nos perguntou se éramos portugueses.
Tratava-se do Pompílio. Falámos com ele durante cerca de uma hora. No dia
seguinte tocou-nos à porta.
“Agarrem nas vossas coisas e venham comigo, para minha casa.
Já falei com a minha mulher. Isto não é lugar para vocês.”
quinta-feira, 6 de agosto de 2015
7 - A MINHA VIDA EM PARIS ANTES DE CONHECER OS PAIS DO DAVOUD
Bom, amigo Silveira, continuando
a nossa conversa de ontem, sobre o Davoud, volto a dizer que tenho a certeza de
que era ele o miúdo que conheci em Paris. Lembro-me bem desse período, talvez o
mais interessante da minha vida, e de quase tudo o que se relaciona com essa
viagem.
Depois de regressarmos a Genebra,
eu e o Cortes separámo-nos dos outros e fomos em direção a Paris. Ele
continuava a arrastar a mala enorme, que parecia feita à medida do seu cérebro,
pois toda a gente sabia que ele possuía um ampliador cabeça, os amigos tinham
até elaborado tabelas para calcular rapidamente os descontos a fazer em relação
às suas afirmações: às medidas dos animais, por exemplo, havia que aplicar uma
taxa redutora de 75%, no caso das doenças, a redução chegava a atingir os 99%.
Como tínhamos de andar à
boleia, a mala era um desmotivador de boas ações, por mais que os condutores
tivessem intenção de parar e chegassem mesmo a imobilizar os veículos, a
verdade é que quando as viaturas se apercebiam do seu tamanho descomunal desobedeciam
às ordens dos condutores e aceleravam por vontade própria. Pelo menos era o que
eu gostava de dizer, para irritar o meu companheiro de aventura.
Estávamos nós há 12 horas
de braço esticado numa terra chamada chalon-sur-Saône,
nunca me esquecerei do nome, quando fomos assolados por uma daquelas
decisões que parecem nascer da frustração mas que, posteriormente, mostram ser
fruto de uma ordenação mais alta, digo até divina: abandonámos a tarefa, entrámos
num café, pedimos umas sandes e uma garrafa de vinho e regalámos as nossas
papilas do bom gosto. Quando saímos já anoitecia, mas aquecidos pelo líquido de
Baco e mais desleixados com as probabilidades, esticámos novamente os braços na
berma da estrada principal. Ainda os dedos apontadores não estavam
completamente direitos e já um citröen 2CV refreava o seu instinto galopante e
estacava 5 metros à nossa direita. Nem queríamos acreditar. Lá dentro, um
marroquino chamado Hassan, esticava os cantos da boca tentando chegar com eles
às orelhas. “Ou allez vous?”, “Paris, Paris”, “Entrez, entrez”, “Et la valise?”,
“Oh! Merde, que portez-vous en cette valise?”, “Le Portugal”, “Mais, c’est
grand, le Portugal!”...
Conseguimos encafuar o
malão e o Cortes nos bancos traseiros do automóvel e lá foi este, teimoso e lento,
galgando quilómetros até à capital francesa. Hassan deixou-nos junto à estação
do Metro Montparnasse – Bienvenüe, porque o nosso destino era ali
perto, numa rua chamada Raymond Losserand, em honra do notável dirigente da
resistência francesa executado em 1942. Eram quatro da manhã. O Cortes não
quis incomodar as nossas amigas portuguesas anfitriãs àquela hora e por isso
ficámos junto à gare, aquecendo-nos com o bafo dos respiradores do metro. Às
seis da manhã olhámos em volta e concluímos, admirados, que Paris estava cheia
de bêbados e sem-abrigo a tentarem aquecer-se como nós. É assim em todo o lado,
amigo Silveira, por mais vaidosas que sejam as civilizações e as cidades, a
miséria humana estende-se, incontornável, como um grande capacho onde as
consciências podem limpar os pés e entrar calmamente nas casas limpinhas da
civilidade. Enquanto não se tornar insuportável, a miséria não perturba, não
contamina, limpa e fortalece a má consciência social. Quando deveríamos dizer
“a sociedade não é boa porque muitos são tratados como coisas” pensamos “a
sociedade é boa para muitos e felizmente eu sou um deles”. E os próprios
despojados da condição humana, contaminados por esta deterioração do ponto de
vista, acabam por afirmar “a sociedade não é boa para mim porque tive azar ou
não a mereço” e depois invertem o pensamento e concluem “eu não sou bom para a
sociedade”.
As nossas duas amigas
tinham cada qual o seu apartamento no n.º 2 do squat da rua Raymond Losserand. Um squat é um prédio votado ao abandono que é ocupado por pessoas que
não são donas nem pagam renda nem têm autorização para o fazer. No caso
daquele, não era apenas um prédio, era todo um quarteirão. Tinha sido ocupado
por gente com ideais de vanguarda mas o tempo substituíra muita dessa gente por
imigrantes das mais diversas nacionalidades e por toxicodependentes. Chegámos
lá às sete da manhã e fomos recebidos pela Fátima, uma amiga portuguesa com ar
beduíno que vivia com um argelino chamado Mustafa, o qual parecia nunca lavar a
cabeça e passava o tempo todo deitado a ler um livro qualquer da faculdade e a
enrolar com o dedo indicador da mão direita um tufo de cabelo encaracolado, que
dava a sensação de escorrer óleo.
Fátima levou-nos ao
3.º andar e alojou-nos na casa da outra amiga, chamada Madalena, que tinha ido
passar uns tempos à Turquia com um namorado dessa nacionalidade. Vivemos ali 3
semanas cheias de peripécias e estranhezas, amigo Silveira, e apenas a boa
vontade dos pais do Davoud, pois tenho a certeza de que eram os pais dele, nos
livrou daquela situação bizarra.
segunda-feira, 3 de agosto de 2015
6. COMO É QUE EU CONHECI O DAVOUD
Pois é Silveira, aquele teu amigo, o Davoud, tenho a certeza de que o
conheci em Paris, quando tinha vinte anos, foi no verão antes de entrar para a Faculdade,
ele não se lembra de mim, nem é suposto lembrar-se, pois nessa altura não tinha
mais de 3 anos, mas eu reconheço-o por causa de um sinal que tem no pescoço,
hás de reparar, parece que às vezes quer espreitar por baixo dos colarinhos da
camisa como se, ao mesmo tempo, sentisse uma enorme curiosidade e quisesse
passar despercebido.
Lembro-me de o dito sinal ser notícia na TF1. O miúdo tinha uma guitarra
elétrica no pescoço, com cerca de três centímetros, bem delineada, parecia
milagre, porque o pai, o Pompílio, era guitarrista aos fins de semana, tocava
nos bailes dos emigrantes portugueses, cheguei a ir a um deles, cheirava a
sardinha e a bacalhau assado e muitas bochechas tinham a cor do vinho e tudo
dançava ao som de cantigas brejeiras, viras minhotos e risadas de acordeão.
Em junho eu, o Cortes, o Carvalho, o primo do Carvalho e o Lagos,
animados pela abertura à Europa que a revolução de 74 tinha trazido aos jovens,
libertando-os também da saloiada salazarista, a que infelizmente estamos a
voltar, pelo menos na desconfiança e na burocracia, em junho, dizia eu, decidimos
meter-nos no comboio e ir para a Suíça, passear e ganhar algum dinheiro a
apanhar fruta, ou talvez tomate, já não me lembro, do que me lembro é que estávamos
com uns tomates do caraças, com um herói dentro de cada uma das bolinhas a
espevitar-nos as hormonas e a excitar-nos com a perspetiva da viagem.
Na noite anterior reunimo-nos no Piper´s,
um bar junto ao mercado, e a coisa começou logo a ganhar dimensões épicas, cada
um de nós pediu uma imperial, exceto o Carvalho, que solicitou educadamente,
como era seu hábito, um sumo de laranja, que naquele tempo era feito com uns
pós estranhos, a que chamavam essência, ora o essencial da questão é que mal o
desgraçado levou a bebida à boca começou a inchar, a inchar, o cimo do pescoço,
os beiços e as bochechas pareciam querer arrebanhar todo o sangue e restantes
líquidos do corpo, “porra, temos que
correr para o hospital senão este gajo morre e lá se vai a viagem!”, saímos
sem pagar, os empregados aperceberam-se da situação mas disseram para irmos à
vontade, que a despesa era por conta da casa, subimos a Avenida 25 de Abril, a
caminho do hospital, com o Carvalho transformado numa lástima empolada, mas o
primo dele tinha uma máquina fotográfica, que havia comprado de propósito para
a viagem, e queria começar a usá-la o mais cedo possível, vá-se lá saber porquê
achou que aquela peripécia já fazia parte da grande aventura e toca a
mandar-nos parar para tirar uma fotografia à carantonha do infeliz, o Carvalho
nunca mais lhe perdoou esse capricho artístico que, na opinião dele, constituiu
um atentado aos valores da solidariedade e da família, embirraram um com o
outro durante toda a viagem e ainda hoje não se falam.
No dia seguinte partimos da gare de Santa Apolónia, no Sud Expresso, cada
um de nós levava aquilo que considerava essencial, eu tinha alguns pares de
cuecas, um licor que surripiara não sei donde e que tinha a marca “Campino”, e ainda
uma gramática de latim, porque tinha feito exame e não sabia se precisava de o
repetir, o Carvalho carregava um saco cheio de conservas e chouriços, o primo,
o Dinis, levava a máquina fotográfica e muitas pernas de frango assadas e picantes,
porque o pai era dono de uma churrascaria, o Lagos, que me lembre, apenas viajava
com uma grande curiosidade, uma enorme magreza e o sonho de ser um ator de
relevo, devo dizer que conseguiu isso, entrou para o Conservatório e fez
carreira, finalmente o Cortes arrastava com esforço um enorme malão castanho,
cheio de roupas, porque pretendia seguir da Suíça para Inglaterra, ao encontro
da sua namorada, que estava lá a trabalhar como enfermeira.
Fomos a caminho de Martigny, no
cantão francês, passando por Lyon, Genève
e Lausanne, embora estivéssemos a entrar
no verão havia um frio do caraças e a apanha da fruta estava muito atrasada,
apenas iria começar dali a três semanas, por isso decidimos regressar a Genève, porque não tínhamos dinheiro
para aguentar a carestia de vida suíça durante tanto tempo.
Foi na bonita cidade de Lausanne, a caminho de Genève, que
o meu licor “campino” cumpriu a sua função. Depois de jogarmos xadrez nos
tabuleiros desenhados nos pavimentos, passámos a noite na gare, tentando
resguardar-nos do frio intenso. A sala estava cheia de clientes como nós,
também eles enregelados. “Fermez la porte” era a única frase que se ouvia
quando alguém entrava. Todos cumpriram aquela mistura monocórdica de ordem e
solicitação até que entrou uma mulher desgrenhada, ainda relativamente jovem,
magra e loira, que abriu as portas de par em par e se recusou a fechá-las,
gritando que em Espanha uma família inteira tinha morrido com monóxido de
carbono numa sala. Ficou à entrada, com a corrente glacial a passar por ela, a
atropelar os palavrões que lhe eram atirados de todos os lugares e a congelar as
carnes e os ossos. Ao fim de cinco minutos de lengalenga, que pareceram uma
eternidade, foi-se embora e logo meia dúzia de corpos enregelados se levantaram
para vedar o acesso ao ar gélido da noite. Acomodámo-nos todos, aliviados, mas
o nosso otimismo durou muito pouco, eis que a mulher voltou a irromper na sala,
gritando “vous êtes fous, oh oui, en Espagne une famille entière…”. A cena
repetiu-se várias vezes, de tal modo que os palavrões em francês já não
conseguiam elevar-se no ar gelado, caíam mal eram arremessados da boca, e foi
então que eu abri a garrafa de licor e esta passou por todas as bocas da sala e
tenho a certeza de que nunca aquela bebida açucarada, alcoólica e enjoativa foi
tão unanimemente apreciada.
Bom Silveira, hoje não tenho tempo para te contar o resto da viagem e como
encontrei os pais do Davoud, o Pompílio e a Iracema. A minha mulher está à
espera. Se estiveres aqui amanhã, a esta hora, ficarás a saber tudo.
segunda-feira, 27 de julho de 2015
5. O MEU IRMÃO NÃO MATEI EU
O meu irmão não matei eu. Isso é certo e seguro como uma ponte portuguesa.
Já a negação da minha nacionalidade tem muito que se lhe diga. Agora, que os meus paizinhos não sejam iranianos, mas portugueses que ostentam os nomes de Pompílio e de Iracema - ou seriam, antes, brasileiros, sobretudo a senhora...? -, isso poderia ser verdade. Porque o meu pai sempre me disse que não era meu verdadeiro pai. Mas Pompílio?
Entramos todos no automóvel velho. Ou seja: como não cabemos no interior, de onde os bancos traseiros foram retirados para levarmos objectos que tencionamos vender - duas mesas, um candeeiro, uma cómoda pequena e alguns quadros -, a família tem de ir numa banheira que transportamos no tejadilho. Enquanto empurro o Silveira lá para cima, para a banheira, ele pergunta-me:
«Mas a polícia deixa o carro ir nestes preparos?»
Hilariante Silveira. Como se eu pudesse cruzar-me com a polícia! Como se, acontecendo isso, não tivesse de acelerar numa fuga acima dos 200 km/h (que o carro não atingiria, mas isso é outra história)! Como se eu pudesse correr o risco de ser interceptado, sem carta de condução, transportando gente numa banheira amarrada ao tejadilho, já para não falar do mobiliário e dos quadros roubados.
«Para onde seguimos?», pergunto, aos gritos, sentado ao volante.
«Para a igreja. O padre quer falar contigo!»
Arranco. Segunda. Não paro no stop. Terceira.
«E que história é essa do meu irmão?», grito em direcção à banheira.
«Hã!?»
Muito vento. Ponho a cabeça de fora e repito:
«Que aconteceu com o meu irmão!?»
«Mataste-o?» (Pergunta-me ou responde-me o Silveira?)
«Está morto?», pergunto eu.
«Não te oiço. Já falamos!»
quarta-feira, 24 de junho de 2015
4. TOCARAM NOVAMENTE. ISTO JÁ É VANDALISMO!
Quem diabo está a tocar à campainha?! São dez horas da manhã,
ainda estou no reino de Hypnos e Morfeu deu-me cabo do sono, levando-me por
pesadelos intermináveis. Todas as noites é a mesma coisa, o cérebro entra em modo
masoquista, espatifando a tranquilidade noturna com cenas pavorosas, dignas de
um filme de terror. Assumo sempre dois papéis: o de realizador e o de
personagem central. Tudo segue uma lógica narrativa impecável: a sequência das
peripécias tem uma coerência perfeita, pelo menos é o que me parece quando
acordo bruscamente e me lembro da totalidade da ação.
Tocaram novamente. Isto já é vandalismo! Nem ao sábado podemos dormir!
Hoje sonhei com a minha morte. Vi-me deitado numa urna cor de laranja, com o corpo completamente retalhado, deixando pender tiras de músculos fatiados e sanguinolentos. O Silveira e o Marcial estavam a meu lado, à esquerda e à direita, respetivamente, em pé, debruçados sobre mim.
“Desta vez é que foi, conseguimos!” Disse o meu primo. E uivaram os dois, como se fossem lobos a chamar a matilha para a carnificina. Começaram depois a despejar sobre mim azeite e vinagre, para me temperarem. O Silveira cortou alhos com uma faca japonesa e espalhou-os sobre as feridas do meu corpo. Sofri dores horríveis, embora estivesse morto.
Mais dois toques na campainha! Porra! Estou farto disto!
O Stop, que embora seja surdo-mudo fala sempre nos meus sonhos, para além de fazer caretas, ergueu-se repentinamente do interior do meu peito, como um alien, e gritou feito doido “Morre, morre peçonhento, estrume de porco, paga pelo que me fizeste!” O Sr. Padre também surgiu, não percebi donde. Estava com a cabeça encostada ao teto e aspergia-me com água benta, mas esta era ácida e ao entrar em contacto comigo esburacava-me todo. E ele berrava, retesando o pescoço “Foge ao pecado, foge ao pecado, assassino, seara do diabo!”
Não aguento mais! Tocaram de novo. Tenho de ir ver quem é. Que raio querem a esta hora? Estou a ficar em brasa!
Já vou, já vou! Quem é?
“É o Silveira.”
O Silveira? Que queres? Porquê a pressa?
“Abre, caraças! Tenho de te contar uma coisa.”
Espero que seja muito importante, ou então vais experimentar a raiva de um iraniano!
“Deixa-te de tretas, só o Padre é que acredita que és iraniano. Sei muito bem que os teus pais se chamavam Pompílio e Iracema, eram de Aveiro e estiveram emigrados em França, na região de Paris.”
Filho da mãe mentiroso! Abro a porta. O Silveira está a olhar para mim com a cara vermelha por causa da excitação. Pergunto-lhe o porquê de todo aquele alarido. Faz uma pausa. Explico-lhe que estou sem paciência para aturar as suas invenções. Cada vez está mais alienado, acho que caminha aceleradamente para o mundo dos psicóticos.
Finalmente resolve contar-me o que se passa.
“Tinha de te dizer isto, Davoud, corre por aí o boato de que mataste o teu irmão!”
Tocaram novamente. Isto já é vandalismo! Nem ao sábado podemos dormir!
Hoje sonhei com a minha morte. Vi-me deitado numa urna cor de laranja, com o corpo completamente retalhado, deixando pender tiras de músculos fatiados e sanguinolentos. O Silveira e o Marcial estavam a meu lado, à esquerda e à direita, respetivamente, em pé, debruçados sobre mim.
“Desta vez é que foi, conseguimos!” Disse o meu primo. E uivaram os dois, como se fossem lobos a chamar a matilha para a carnificina. Começaram depois a despejar sobre mim azeite e vinagre, para me temperarem. O Silveira cortou alhos com uma faca japonesa e espalhou-os sobre as feridas do meu corpo. Sofri dores horríveis, embora estivesse morto.
Mais dois toques na campainha! Porra! Estou farto disto!
O Stop, que embora seja surdo-mudo fala sempre nos meus sonhos, para além de fazer caretas, ergueu-se repentinamente do interior do meu peito, como um alien, e gritou feito doido “Morre, morre peçonhento, estrume de porco, paga pelo que me fizeste!” O Sr. Padre também surgiu, não percebi donde. Estava com a cabeça encostada ao teto e aspergia-me com água benta, mas esta era ácida e ao entrar em contacto comigo esburacava-me todo. E ele berrava, retesando o pescoço “Foge ao pecado, foge ao pecado, assassino, seara do diabo!”
Não aguento mais! Tocaram de novo. Tenho de ir ver quem é. Que raio querem a esta hora? Estou a ficar em brasa!
Já vou, já vou! Quem é?
“É o Silveira.”
O Silveira? Que queres? Porquê a pressa?
“Abre, caraças! Tenho de te contar uma coisa.”
Espero que seja muito importante, ou então vais experimentar a raiva de um iraniano!
“Deixa-te de tretas, só o Padre é que acredita que és iraniano. Sei muito bem que os teus pais se chamavam Pompílio e Iracema, eram de Aveiro e estiveram emigrados em França, na região de Paris.”
Filho da mãe mentiroso! Abro a porta. O Silveira está a olhar para mim com a cara vermelha por causa da excitação. Pergunto-lhe o porquê de todo aquele alarido. Faz uma pausa. Explico-lhe que estou sem paciência para aturar as suas invenções. Cada vez está mais alienado, acho que caminha aceleradamente para o mundo dos psicóticos.
Finalmente resolve contar-me o que se passa.
“Tinha de te dizer isto, Davoud, corre por aí o boato de que mataste o teu irmão!”
segunda-feira, 22 de junho de 2015
3. A HISTÓRIA COMPLICA-SE: BOM SINAL, BOM SINAL!
Puxo de um cigarro. Não para o fumar, que não fumo há muitos anos, desde que o Monsenhor exclamou, horrorizado, «Um padre não fuma!»», um dia em que me viu soprando aros de fumo para o ar. (O que eu tentava era formar cruzes, mas não pude aperfeiçoar o método). Já não fumo, portanto. Mas, a sós, puxo de vez em quando de um cigarro, mantenho-o entre o indicador e o médio, e isso ajuda a que me concentre e a que ponha as minhas ideias em ordem.
Estou com dois textos diante dos olhos. Um, que leram primeiro, foi o daquela espécie de duelo entre o Davoud e o Silveira, e que o Silveira transcreveu como vos dei a ler. Estranho momento. O Silveira e o Davoud apontando-se pistolas um ao outro, incapazes de ultrapassar a situação - como se chegou àquilo? perguntei-me ao reler a descrição.
Tentando recordar a sucessão de peripécias que levou ao «impasse armado», como se lhe referia o Silveira, fui à procura de outras cartas, anotações, fotografias, e dei de caras com aquela missiva do Davoud. O Davoud escrevia bem! Lia muito, e era um fanático pela literatura portuguesa (inclusivamente Camilo), apesar de se tratar de um imigrante iraniano que aprendeu o português à sua própria custa.
Casou cá, em Portugal, com a Irina, que era por sua vez uma emigrante ucraniana.
Sei que Davoud me escondia que era casado e tivera filhos, para assim justificar a sua tremenda fome sexual; nem na confissão - que me relembra na carta - teve coragem para me revelar que o seu pecado de insaciedade sexual era, ainda por cima, um pecado de infidelidade.
Marcial não era seu primo. Foram criados juntos, de facto, por uma senhora nobre que os acolheu, mais a um irmão de Davoud, surdo-mudo. Consta que a senhora foi assassinada por Davoud, seu irmão e Marcial: teriam eles entre catorze (o mais novo, irmão de Davoud) e dezoito anos (Davoud e Marcial). Também há quem diga que a senhora foi morta por um herdeiro. Ao certo, ninguém sabe.
Mas alguém sabe alguma coisa nesta vida?
Marcial desapareceu. Quando reapareceu, era um homem que entretanto casara, tivera filhos, mas perdera a mulher e os filhos.
Desígnios de Deus? Que sabemos nós disso, também?
E se eu alumiasse este cigarro e desse duas fumaças para me acalmar?
segunda-feira, 15 de junho de 2015
2. QUE O SR. PADRE NOS AJUDE!
Chamo-me Davoud, Sr. Padre. Lembra-se de mim? Foi o senhor que, com
enorme bondade, me orientou quando eu andei tresmalhado do seu rebanho,
completamente desorientado pelas inúmeras tentações da carne, que me saíam ao
caminho a qualquer hora do dia e da noite, me abriam desmesuradamente as
pupilas e me introduziam no cérebro uma vontade irascível de copular. Sempre
fui extraordinariamente dotado para as palavras, podia escrever um livro a
partir da minha fala, porque desde a infância que as frases me saem com a
sintaxe e o vocabulário da escrita. Isso agrada às mulheres, perdão, Sr. Padre,
às senhoras, assim é que devo falar, porque merecem o nosso respeito, como
muito bem me ensinou.
Quando o procurei, naquele dia terrível em que senti a morte a lamber-me
as tripas e a fazer de mim um calafrio, olhou-me compadecido, pousou-me a mão
no ombro, sentou-me no banco de madeira da sacristia e ouviu-me durante horas.
As palavras pareciam escoar todas as minhas frustrações para os seus ouvidos,
libertando-me dos padecimentos, há muito tempo acumulados pela compulsão
libidinosa que me assolara ao longo de meses. Durante toda a minha vida, tinha
sido um fulano misógino, incapaz de criar intimidade significativa com as
mulheres. Interessava-me apenas pela sedução superficial. E tinha muito sucesso
nesse domínio, pois elas adoravam as pequenas atenções que lhes proporcionava,
falavam do meu olhar meigo e enigmático, queriam perder os dias na minha
proximidade.
Uma noite transformei-me. Tive aquele sonho, penso que se lembra de lho
contar, e na manhã seguinte acordei como se me crescesse um vulcão nos
testículos, como se o diabo abrasado se tivesse introduzido abusivamente no meu
corpo e me soprasse furiosamente nas glândulas sexuais. O falo inchou e assim
permaneceu, altaneiro, sôfrego, latejando pecaminoso perante qualquer mulher.
Nenhuma amiga escapou ao meu desejo. Atraiçoei tudo e todos, arrisquei a vida,
perdi a dignidade, fui corroído pela culpa. A pujança fálica era
inesgotável, até doer, até aos espasmos.
Mas hoje não é de mim que venho aqui falar, Sr. Padre, é do meu primo, o
Marcial, que bem conhece. Estou muito preocupado. Tudo começou há cerca de um
mês. Estava com ele na sala, a ver um jogo de futebol, e reparei que tinha um
ar pasmado, a olhar através da parede, para o infinito. Nunca mais foi o mesmo.
Fala sozinho, mostrando sinais de demência, diz coisas ininteligíveis… Às vezes
tenho a sensação de que pensa que existe mais gente em casa. Gostava muito que
o Sr. Padre o chamasse aqui para conversar, fizesse com que ele se abrisse,
como aconteceu comigo. É o meu único familiar e fomos criados juntos. Quando
lhe assaltaram a casa e lhe mataram a mulher, os dois filhos e a sogra, ficou
perdido durante anos, à deriva pelo oceano das dores. Parecia ter recuperado,
desde que veio para minha casa. Mas estou muito apreensivo com esta nova faceta
dele, Sr. Padre. Suplico-lhe que nos ajude.
domingo, 31 de maio de 2015
1. UM DUELO DE HOMENS BONS
1.
Pressinto uma ideia de duelo, mas não é propriamente um duelo.
Ele e eu estamos face a face; fitamo-nos com demasiada força. Aponta-me uma arma [aponta-ma, mas para onde em mim? se disparasse, em que órgão acertaria?] e eu aponto-lhe uma arma.
Estamos a um fio de que algo se precipite, e o fio em que nos sustentamos, imóveis e sós no mundo, é olharmo-nos. Os nossos olhos acertam, esses sim, fluentemente nos olhos um do outro.
Não quero disparar. Mas, então, como hei-de eu sair desta situação sem me deixar matar?
Podia ser um sonho. É tudo muito incredível para que esteja realmente a acontecer.
Daqui a duas horas, ou três, ou quatro, se entretanto eu não acordar – ah, eis pois porque a hipótese do sonho me não convence: este tempo tem a consistência e a duração do tempo real – a nossa fadiga será extrema; terei cãibras; não me atrevo a baixar a pistola enquanto ele não baixar a sua. Mas suponho que Davoud raciocine da mesma forma. Não deporá a sua. Porque não quer? Para não se tornar vulnerável? Diacho de situação: como chegámos a este ponto?
E se eu dissesse alguma coisa?
«Senhor, oiça, esta situação é insuportável. Vamos os dois colocar as pistolas no chão? À vista? Ao mesmo tempo, e com movimentos muito vagarosos?»
Não me arrisco a falar – sempre fui um homem muito tímido.
Para se perceber como viemos dar a este ponto morto da vida é importante que vos conte como a minha casa – que, realmente, nem minha era, pois que um amigo ma havia emprestado para eu viver durante um ano –, retomo: vos conte como a casa onde eu vivia foi invadida e ocupada por aquela família. Por Davoud, sua mulher e filhos, os pais dela, o irmão dele.
Vem-me à memória a primeira vez que os vi juntos.
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