sábado, 24 de outubro de 2015

12. O OVNI QUE TROUXE OS IRANIANOS

Espera lá, Silveira, agora fez-se luz nesta cabeça de abóbora de cabelo desgrenhado que costumo carregar sobre o pescoço. Porque é que não pensei nisto há mais tempo?! A tua história não é temporalmente aceitável. Tu és cota, mas não tanto. És até mais novo do que eu. Por isso não podias ter conhecido o pai do Davoud antes de este nascer e já seres repórter nesse tempo. Que diabo, em 1980, quando estive em Paris, terias vinte anos. Foi há trinta e cinco. O Davoud já tem mais de quarenta. Ou estás a brincar comigo ou a tentar desviar-me a atenção. Vá lá, não faças de mim parvo! De qualquer modo, existe de facto uma relação com outros iranianos.
Esse verão foi um marco na minha existência. Por isso recordo todos os pormenores ligados a esse período. Antes da viagem, por exemplo. Arranjei uma namorada a quem disse que me chamava Segismundo. Ela acreditou. Fiz uma aposta com o Cortes em como conseguia seduzi-la. Saímos várias noites, incluindo aquela em que dizem ter aparecido um ovni por cima da baía. Posso garantir que foi verdade, pois estava com essa namorada, a Angélica, e vimo-lo perfeitamente. Ela saiu de Cascais nesse verão, para a Figueira, salvo erro, e quando regressei de França já não a vi. Mas há cerca de um mês, estava eu a ler o Cascais Magazine, numa edição dedicada a essa aparição do objeto voador não identificado, em 1980, quando deparei com o testemunho escrito dessa minha acompanhante. Fiquei extasiado pelo facto de saber que ainda faço parte das suas memórias, embora não conheça mais nada dela. Tirei duas cópias ao texto. Toma, lê, depois explico-te a relação com outros iranianos. 

"Lembro-me bem da noite do OVNI.
A evocação dos estranhos eventos que ocorreram nessa data, tão insólitos como faiscantes, entranhou-se avassaladoramente no meu referente de existência e acometeu, ao longo destes anos, os lampejos mais fortes da minha consciência.
Era novinha, quase adolescente. Tinha vinte anos de fulgor e ingenuidade. Estava ainda deliciada com as pequenas descobertas e esperanças típicas das raparigas que não conseguem estancar o rubor, diante dos piropos dos rapazes mais atrevidos.
Era muito púdica. Ainda hoje o sou, mas nessa idade atingia os píncaros do exagero. A moral católica, que me entrara no corpo e na mente durante a inteireza da infância, enquanto me ajoelhava, sem pausa, nos bancos da Igreja Matriz, fizera de mim um projeto de mulher repleto do sentido do meu nome: Angélica.
Depois de estar algum tempo na esplanada do Hotel Baía, com o meu namorado recente, o Segismundo, fui jantar com ele ao restaurante D. Pedro I, ali nas escadinhas que subiam na lateral do antigo quartel dos bombeiros. Passávamos a estátua oxidada do rei justiceiro e lá estava ele, o comedouro dos jovens e dos menos abonados. Pedimos costeletas grelhadas, de novilho, com batata frita. Não havia sítio nenhum com tanta qualidade por tão baixo preço. Embora não tivéssemos problemas em pagar mais por uma refeição, ir ali dava-nos uma certa aura de juventude despretensiosa.
Depois do jantar fomos até ao marégrafo. O mar estava plácido, o ar tépido, as estrelas desejosas de nos acompanhar, os ânimos quentes… As proteínas e os hidratos do repasto atafulhavam tanto os espaços gástricos que os corações pareciam ser obrigados a deslocar-se em direção aos lábios, e sabem o que acontece aos corações quando estão próximos das bocas: as mucosas tornam-se mais sanguíneas, dilatadas, erógenas, brota nelas um desejo irrefreável de lábios e de pele.
Segismundo avançou na exploração do meu corpo, como um aventureiro intrépido, puxando-me para ele com afoiteza experimentada. Eu alternava os gemidos prazerosos com negações sensatas de menina de bem. Estávamos mesmo na ponta do passeio, numa zona pouco iluminada, encostados à muralha da cidadela.
— Vem ali o quebra ossos! — Exclamou de repente o Segismundo.
E era verdade. Tratava-se de um argentino, dono do bar La Pulperia, que tinha enorme deleite em massacrar o mais possível as mãos daqueles a quem cumprimentava, apertando-as até às lágrimas. Diziam que não trocava este prazer por nenhum outro, incluindo o do sexo.
Com a desculpa de que não queria ter as mãos esmifradas pelo compulsivo sul-americano, cujo bar fechava nesse dia, o meu amor levou-me a descer as escadas do marégrafo e a aceder à passagem estreita, sobre as rochas que faziam a separação entre a fortaleza e a água salgada. Aí, sem vivalma que se fizesse notar, encostou-me à muralha e recomeçou as suas atividades exploratórias do meu corpo. Beijou-me, sugou-me, colou-se, puxou-me, enlaçou-me, enroscou-se…
Foi então que surgiu o OVNI. Era imenso e redondo e encheu o meu olhar. O tom avermelhado e luzidio da sua parte central produziu em mim um impacto tão forte que soltei um grito, entre o medo e o espanto. Esteve ali sob as estrelas, não sei por quanto tempo. Pareceu-me uma eternidade. E embora digam que se afastou em direção ao mar eu fiquei com a ideia de que ele regressou diversas vezes, antes de se afastar definitivamente.
Nunca, por mais anos que viva, esquecerei aquele objeto misterioso, que assistiu à minha primeira noite de amor e me deixou a cabeça povoada de estrelas e de viagens espaciais.

Este é, de facto, o meu Cascais Menino.”

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