Sr. padre Tortulho
Na minha infância, o meu
pai costumava dizer que a Fé movia montanhas. Dizia-o muitas vezes com uma
expressão jocosa, como se não levasse muito a sério a sua própria afirmação. E
quando tinha amigos lá em casa chamava-os à janela e as paredes estremeciam com
a risota. Posso garantir aqui que, falasse ele convictamente ou não, o dito era
totalmente verdadeiro. A Fé passava todos os dias no passeio do outro lado da
rua e gerava, nos que a viam, uma enorme sensação de insólito, porque os seios
que se movimentavam com ela eram verdadeiras montanhas, enormidades glandulares
absolutamente desproporcionadas em relação ao seu corpo de sessenta quilos. Soube,
muitos anos mais tarde, que afinal se tratava de excesso de prolatina.
Se nesse tempo aprendi a
acreditar na exuberância da Fé, desiludi-me, por outro lado, com as virtudes do
clero.
Certo dia apareceu na
minha rua um cantoneiro, nem sei a que propósito, viu a madona peituda,
arregalou os olhos e nunca mais de lá saiu. Era já um pouco idoso. Ficava à
espera da passagem dela, encostado ao carrinho da limpeza, e quando a mulher inundava
aqueles olhos raiados de vinho tinto ele arranjava coragem para lhe atirar
sempre o mesmo piropo subentendido:
— Ai menina, quem me dera
ser bebé!
A senhora nunca lhe
respondeu, mas de vez em quando sorria e tal possibilidade mantinha a esperança
do homem.
O responsável pela
desilusão do limpador de ruas foi o Frei João, um dominicano que não vivia em
clausura por ser arquitecto e ganhar dinheiro para a Ordem. Tinha liberdade para
exercer a arquitectura e aproveitava-a para beber, comer, contar anedotas,
confessar senhoras, dizer mal dos padres e praticar convívio com toda a espécie
de gente. Ora o frade acabou por conhecer a Fé no confessionário da capela do Solar
dos Falcões, junto do Teatro Gil Vicente, em Cascais, e empenhou-se com tanta
intensidade em conhecê-la mais profundamente que resolveu fazer serviço ao
domicílio. Tudo teria decorrido no mais virtuoso sigilo se o enamorado
cantoneiro não tivesse encontrado coragem para se tornar mais afoito e não
resolvesse ir guardar, de noite, a porta da sua opulenta amada. Como sabia que
ela não tinha marido, ao ver um vulto sair rápido e sorrateiro por uma
janela julgou tratar-se de um bandido e atacou-o selvaticamente, matando-o com
o golpe de uma pedra numa das têmporas.
Desde esse tempo, senhor
padre, desliguei-me do respeito pela Igreja. Entristeceu-me a sorte do
cantoneiro. Em relação a si, li várias vezes a sua carta e concluí que me estava a ameaçar. Se
isso é verdade, então o que eu disse ao Silveira também o é e o Sr. deve ser
mesmo o mentor desse grupo. Custa-me, Sr. padre Tortulho, que o Silveira ande
metido com vocês, porque até me parece bom homem. Mas não se preocupe, não vou
divulgar a ninguém as minhas suspeitas, pode estar descansado. Aliás, vou
continuar aqui no Alentejo mais algum tempo.
Espero que ganhem juízo e
se arrependam do mal que fizeram.
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