Não percebo o que se passa
consigo, padre. Perde as noites no facebook
e não tem tempo para falar comigo de assuntos sérios? Problemas que nos
interessam, se bem me entende!
O Francisco, amigo do
Silveira, regressou depois de algum tempo fora, julgo que no Alentejo, e disse-lhe
que desconfia que nós – eu, o padre e o Marcial – é que andamos por aí a matar
as pessoas. A última foi a Dona Aurora, a velha invisual de quem o Chefe
Abrantes e a inspectora esperavam que ajudasse a descobrir o assassino, identificando o
barulho dos seus passos. Levaram até ela a dona do Café Safari, porque
relacionaram a pequena protuberância chifruda que esta possui na testa com o
chifre de rinoceronte utilizado no homicídio do idoso do 5.º andar. A Dona Aurora negou
peremptoriamente que os passos que ouvira na noite do assassínio fossem os da mulher
fornecedora dos bichos que a comandita do Marcial, do Sidónio Matacão e do Chefe
Abrantes começam a matar logo de madrugada.
Veja o padre que eu continuo
com umas premonições do diabo, certinhas, certinhas que até metem nojo! A chona
passada adormeci a pensar na “garota de gelo”, uma jovem de dezanove anos,
chamada Jean Hiliard, habitante do Minesota, que ficou congelada numa noite de
tempestade com temperaturas de vinte graus negativos. O estranho caso
aconteceu em 1980 e foi seguido por todos os órgãos de comunicação da época. A
rapariga deu entrada no hospital mais dura do que uma pedra mas, ao fim de uma
horas embrulhada em cobertores, ganhou convulsões e descongelou. Quarenta e
nove dias depois saiu do internamento sem qualquer dano físico ou mental,
deixando o mundo perplexo.
A noite passada, estava eu
a sonhar com a jovem do Minesota quando ela se transformou na Dona Aurora, a
testemunha auditiva do assassinato do vizinho idoso do andar de cima.
Um pesadelo, padre, um
horrendo pesadelo!
As ventas marmóreas da anciã
apareceram-me na obscuridade do sonho acompanhadas por um ruído persistente e
incomodativo, que logo percebi ser o de um pequeno motor de electrodoméstico. Pelo
frio que se fazia sentir e que enregelou a minha entrega ao divino Hypnos, só
podia tratar-se de uma máquina refrigeradora.
Na manhã seguinte constatei,
mais uma vez, a bizarra constituição premonitória dos meus sonhos: alguém, imitando
o procedimento que a natureza realizara com a jovem do Minesota, congelara a
Dona Aurora numa arca frigorífica que o filho mais velho, o Estampido, como lhe
chamam, caçador certificado, utilizava como reservatório de lebres e perdizes
da sua faina predatória. Para introduzir a idosa na caixa do refrigerador o
assassino teve de retirar vários animais de caça, que deixou espalhados pela
cozinha, irremediavelmente impróprios para as patuscadas. Este comportamento
foi o que mais desconsolou o filho da anciã: praguejou, debulhado em lágrimas,
revoltado com tamanha crueldade, acusando mesmo o Chefe Abrantes de inoperância
até que este vociferou:
— Faça favor de se calar,
nomeadamente, com a porcaria dos animais, porque, nomeadamente, o que me
interessa é a sua mãe, nomeadamente a Dona Aurora, e se não se cala, nomeadamente,
dou-lhe voz de prisão!
Por que diabo tenho sonhos
com estas coisas, padre? E são tão realistas que até parece que estou lá, a
presenciar os factos. Isto anda a pôr-me a cabeça à roda.
Preciso de falar consigo. E temos de ter cuidado com o amigo do Silveira, o tal Francisco. Ainda nos vai meter em alhadas.
Corações ao alto, padre!
Ele está no meio de nós!
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