Ainda ninguém deu por mim mas chegou a
hora de me apresentar e de tecer algumas considerações, que considero
importantes, para esclarecer o último documento que divulguei e que falava da morte
da Doroteia.
Até aqui limitei-me a publicar, de acordo
com a sequência temporal, as mensagens trocadas entre aqueles que me parecem
ter sido os principais intervenientes nos crimes que ocorreram nesta glamorosa
vila. Agora, vou esclarecer algumas dúvidas que podem corroer a confiança dos
leitores na lógica narrativa dos documentos selecionados.
Como é que a Doroteia caiu da mesa quando fazia
sexo com o Matacão?
Esta foi a pergunta que, na altura, fez a
inspectora Zé Pereira, a agente da polícia judiciária responsável pela
investigação. Do que falei com o Chefe Abrantes, percebi que ela andou muito
desconfiada, nomeadamente não acreditou na história, e encarquilhou
nomeadamente a cabeça com as várias hipóteses em que magicou.
— Caro Chefe Abrantes — dizia ela — o
Sidónio levou a falecida para uma cópula, em cima da mesa da sala, esperançado
de que, no desconforto de uma superfície dura, ela não adormecesse durante o
evento. Para que a senhora pudesse sentir a dureza do tampo teria de estar numa
posição de missionário, se bem me entende, e por baixo dele, e seria muito
difícil cair, mesmo que dormisse. Se estivesse por cima, não haveria acordo com
o propósito, que era sofrer a rijeza da madeira, para além da outra, se bem me
entende. Pode ser que a estratégia tenha mesmo funcionado e, depois do êxtase,
tenham adormecido os dois e caído. Mas, cá para mim, o mais provável é que ele seja
um assassino!
O Chefe Abrantes diz que a inspectora Zé
Pereira era nomeadamente assim, muito dinâmica e radical nas suas crenças,
teimosa como uma burra, nomeadamente. Formava uma crença logo nas primeiras
impressões e não havia nada que a demovesse. Primeiro colocava o ponto final e
depois explorava a restante pontuação.
A verdade é que a inspetora estava
enganada. A Doroteia caiu e morreu porque era muito caprichosa nas posições do
amor. Gostava de fazer sexo atravessada sobre o sommier baixo, com as costas já
a descair e a nuca encostada ao chão. O Sidónio esparramava-se sobre ela, feito
equilibrista, aguentando-se esforçadamente com as palmas das mãos no chão.
Claro que, devido à altura da mesa, aquele posicionamento dos corpos era um
convite irrecusável à desgraça.
Muito sofreu o Sidónio com o falecimento
da amada. O Chefe Abrantes diz mesmo que ele até nomeadamente se amargurou.
Tinha vivido mais de dez anos a tentar
satisfazê-la de todas as formas que sabia e inventava. Um dia, ouviu um
historiador falar do rio Do Touro, um riacho que corre ali pelo sopé da serra de
Sintra, por cima da Biscaia, e desagua numa enseada arenosa, utilizada na
antiguidade como porto de colonos de Cartago. De noite sonhou que na origem
daquele curso de água estivera um enorme touro cartaginês, de cobrição, tão
pujante que as vacas fecundadas por ele não pariam bezerros mas sim elefantes. Convencido
da realidade do seu devaneio noturno, encheu-se de fé, subiu as curvas e
contracurvas do piso alcatroado, que parte da Malveira em direção ao vistoso
casaria da Atalaia, e foi lavar-se repetidamente nas águas daquele ribeiro, para
absorver a descomunal exuberância do bovídeo.
— Sou o touro cartaginês do meu amor, pois
sou? — Perguntava ele à Doroteia.
— Sim, sim, e também o de Creta —
respondia ela, que era muito mais erudita.
Numa dessas surtidas ritualistas e mágicas,
o Matacão que, como sabemos, utilizava o bico do seu enorme nariz para fazer
pontaria às distâncias, foi mordido, na penca, por uma abelha. Na aflição,
distraiu-se, perdeu a noção do espaço, desequilibrou-se no atalho íngreme, foi
sugado pela gravidade e encetou a dar tombos e mortais até ficar todo partidinho
e completamente arredado do viço do touro cartaginês. Nunca mais parou de coxear.
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