Está a ver o que aconteceu, Padre? Parece
que os meus sonhos comandam a morte. Porra! Estou farto disto! E o senhor
continua sem dizer nada, encafuado nessa pretensiosa faceta serena e clerical.
O caraças! Tem é medo daquilo que sabemos!
O Sidónio morreu, mas a alma não abandonou
voluntariamente o corpo, alguém a arrancou, com selvajaria imperdoável. Mais
uma vez o meu cérebro estrambólico visualizou, nas estrebuchações de Morfeu, o lastimável futuro de alguém, antecipou
a realidade sórdida e talvez fatídica.
Dizem que foi um dia rotineiro para o
amigo do Marcial e do Chefe Abrantes. Saiu do emprego que possui numa empresa
municipal — sabemos como esses ofícios são conquistados — estava muito calor,
pensou em tomar um banho mas, como sempre acontecia, sentiu-se angustiado e
resolveu não o fazer. Conhecia muito bem a sabedoria da santa madre igreja
romana, que durante mais de mil anos andou a afirmar que o “agá-doisó” abria os
poros e deixava entrar as doenças, ora se ela o dizia é porque era verdade,
hoje as pessoas vivem enganadas pelas multinacionais dos produtos higiénicos,
lavam-se a toda a hora e depois gastam o dinheiro em medicamentos por causa das
enfermidades, o Matacão já tinha visto o aspeto vários pescadores afogados no
mar, a permanência na água deixava-lhes a pele com uma aparência abominável,
por isso ele fez o que sempre fazia, humedeceu o polegar e o indicador da mão
direita, retorceu o bigode e apontou-o para a têmpora, fez o mesmo do outro
lado da cara e dirigiu-se calmamente para o café Safari.
A tasca é a mãe daquela gente toda, o
padre sabe muito bem isso, fala-se muito no vício, no consumo exagerado de
bebidas alcoólicas, mas a verdadeira dimensão das tabernórias é maternal, cada
gargalo de garrafa é um retorno aos mamilos leitosos das mães, especialmente no
caso dos homens. Até as conversas se centram compulsivamente no futebol, isto
é, numa coisa redonda como o formato do seio materno.
À meia-noite, quando o bandulho do café
Safari já tinha transferido quase tudo o que era de ingerir para as barrigas
dos clientes — cervejas, aguardentes, vinho, sandes diversas, pastéis fritos e
muito mais — o Sidónio resolveu ir deitar-se. Despediu-se do Marcial e dos
outros e pôs-se a caminho. O álcool acumulado já transbordava do cérebro,
chocalhava no alto da cabeça, comprimia os nervos óticos e acirrava tonturas,
vómitos e tropeções.
— Eh! Vento norte! — Gritou um dos que
ficaram, um fulano com cara de osga, que costumava barafustar com a dona do Safari
por não ter negalhos, a melhor
iguaria do mundo e mesmo do universo, feita na sua terra, Miranda do Corvo, com
tripas de cabra aos pedacinhos a encher o bucho do mesmo animal.
O Matacão seguiu a sua viagem instável.
Parecia ter uma atração irresistível pela exploração alternada das bermas. Tinha
de passar por uma rua mal iluminada, a caminho do Cabreiro, e foi aí que o
crime aconteceu. Por causa das eleições que se aproximam, os políticos que
dirigem a Câmara Municipal resolveram concentrar todas as obras e mais algumas
nas estradas do concelho e num tempo muito curto. Sabem que causam sérios
transtornos aos condutores, pois estes para se deslocarem entre duas
localidades contíguas chegam a ter de percorrer meia dúzia de desvios. Porém,
os políticos não dão importância aos descontentamentos do presente, o povo
esquece com rapidez e, quando vir o alcatrão viçoso a enegrecer as estradas e a
deliciar os pneus e as suspensões, sacará entusiasticamente do seu voto para
oferecer aos que o semearam.
Acontece que na zona mais escura da
estrada pernoitavam algumas máquinas utilizadas nas obras de repavimentação,
nomeadamente um cilindro de estrada, como disse depois o Chefe Abrantes. O que
aconteceu ali, quando o Sidónio se aproximou, está longe de ser compreendido
mas o certo é que, ao alvorecer, os transeuntes mais atentos tiveram a visão
horrenda do seu corpo cilindrado pelo rolo compactador, que nomeadamente,
segundo destacou o Chefe Abrantes, era da marca Sinomach. O facto de ser este o fabricante levou os espantosos
neurónios malabaristas do nosso agente da autoridade a elaborarem a conjetura
de que, longe se ser uma coincidência, isto podia manifestar alguma relação com
a colossal penca do Sidónio, poderia mesmo ser o primeiro caso de um assassino
em série de indivíduos narigudos.
Mas deixemos estas deambulações
em torno do crime, o que me interessa é que, mais uma vez, os meus sonhos
visualizaram o futuro, tiveram a premonição do homicídio, viram claramente
vista a morte. Na noite anterior, durante a minha entrega a Morfeu, o Sidónio
tinha-me aparecido feito em papa. Isto é horrível padre, começo a ficar
seriamente cismático. Temos de ter muito cuidado! Parece que os meus sonhos
comandam a morte.
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