terça-feira, 18 de abril de 2017

26 - O SONHO COMANDA A MORTE

Está a ver o que aconteceu, Padre? Parece que os meus sonhos comandam a morte. Porra! Estou farto disto! E o senhor continua sem dizer nada, encafuado nessa pretensiosa faceta serena e clerical. O caraças! Tem é medo daquilo que sabemos!
O Sidónio morreu, mas a alma não abandonou voluntariamente o corpo, alguém a arrancou, com selvajaria imperdoável. Mais uma vez o meu cérebro estrambólico visualizou, nas estrebuchações de Morfeu, o lastimável futuro de alguém, antecipou a realidade sórdida e talvez fatídica.
Dizem que foi um dia rotineiro para o amigo do Marcial e do Chefe Abrantes. Saiu do emprego que possui numa empresa municipal — sabemos como esses ofícios são conquistados — estava muito calor, pensou em tomar um banho mas, como sempre acontecia, sentiu-se angustiado e resolveu não o fazer. Conhecia muito bem a sabedoria da santa madre igreja romana, que durante mais de mil anos andou a afirmar que o “agá-doisó” abria os poros e deixava entrar as doenças, ora se ela o dizia é porque era verdade, hoje as pessoas vivem enganadas pelas multinacionais dos produtos higiénicos, lavam-se a toda a hora e depois gastam o dinheiro em medicamentos por causa das enfermidades, o Matacão já tinha visto o aspeto vários pescadores afogados no mar, a permanência na água deixava-lhes a pele com uma aparência abominável, por isso ele fez o que sempre fazia, humedeceu o polegar e o indicador da mão direita, retorceu o bigode e apontou-o para a têmpora, fez o mesmo do outro lado da cara e dirigiu-se calmamente para o café Safari.
A tasca é a mãe daquela gente toda, o padre sabe muito bem isso, fala-se muito no vício, no consumo exagerado de bebidas alcoólicas, mas a verdadeira dimensão das tabernórias é maternal, cada gargalo de garrafa é um retorno aos mamilos leitosos das mães, especialmente no caso dos homens. Até as conversas se centram compulsivamente no futebol, isto é, numa coisa redonda como o formato do seio materno.
À meia-noite, quando o bandulho do café Safari já tinha transferido quase tudo o que era de ingerir para as barrigas dos clientes — cervejas, aguardentes, vinho, sandes diversas, pastéis fritos e muito mais — o Sidónio resolveu ir deitar-se. Despediu-se do Marcial e dos outros e pôs-se a caminho. O álcool acumulado já transbordava do cérebro, chocalhava no alto da cabeça, comprimia os nervos óticos e acirrava tonturas, vómitos e tropeções.
— Eh! Vento norte! — Gritou um dos que ficaram, um fulano com cara de osga, que costumava barafustar com a dona do Safari por não ter negalhos, a melhor iguaria do mundo e mesmo do universo, feita na sua terra, Miranda do Corvo, com tripas de cabra aos pedacinhos a encher o bucho do mesmo animal.
O Matacão seguiu a sua viagem instável. Parecia ter uma atração irresistível pela exploração alternada das bermas. Tinha de passar por uma rua mal iluminada, a caminho do Cabreiro, e foi aí que o crime aconteceu. Por causa das eleições que se aproximam, os políticos que dirigem a Câmara Municipal resolveram concentrar todas as obras e mais algumas nas estradas do concelho e num tempo muito curto. Sabem que causam sérios transtornos aos condutores, pois estes para se deslocarem entre duas localidades contíguas chegam a ter de percorrer meia dúzia de desvios. Porém, os políticos não dão importância aos descontentamentos do presente, o povo esquece com rapidez e, quando vir o alcatrão viçoso a enegrecer as estradas e a deliciar os pneus e as suspensões, sacará entusiasticamente do seu voto para oferecer aos que o semearam.
Acontece que na zona mais escura da estrada pernoitavam algumas máquinas utilizadas nas obras de repavimentação, nomeadamente um cilindro de estrada, como disse depois o Chefe Abrantes. O que aconteceu ali, quando o Sidónio se aproximou, está longe de ser compreendido mas o certo é que, ao alvorecer, os transeuntes mais atentos tiveram a visão horrenda do seu corpo cilindrado pelo rolo compactador, que nomeadamente, segundo destacou o Chefe Abrantes, era da marca Sinomach. O facto de ser este o fabricante levou os espantosos neurónios malabaristas do nosso agente da autoridade a elaborarem a conjetura de que, longe se ser uma coincidência, isto podia manifestar alguma relação com a colossal penca do Sidónio, poderia mesmo ser o primeiro caso de um assassino em série de indivíduos narigudos.

Mas deixemos estas deambulações em torno do crime, o que me interessa é que, mais uma vez, os meus sonhos visualizaram o futuro, tiveram a premonição do homicídio, viram claramente vista a morte. Na noite anterior, durante a minha entrega a Morfeu, o Sidónio tinha-me aparecido feito em papa. Isto é horrível padre, começo a ficar seriamente cismático. Temos de ter muito cuidado! Parece que os meus sonhos comandam a morte.

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