Estou
a escrever-lhe, padre Tortulho, movido pela indignação e pelo repúdio perante a
morte do meu amigo Silveira. Não sei se ainda se considera sacerdote mas, se
isso acontece, é porque perdeu completamente o sentido moral e utiliza a
religião como um simples instrumento para concretizar os seus interesses. A
avaliar pelas imagens e conversas que coloca na sua página secreta do facebook, esses interesses são
abomináveis. Mas descanse que não tenciono denunciá-lo, quero é meter-me na
minha vida. Mantenha-se longe de mim, se faz favor!
Um
padre não pode ser extravagante, muito menos bizarro. Os artistas sim, mas o
senhor nunca será um artista.
Salvador
Dalí — esse sim — era um artista. Conheceu a Gala, a mulher da sua vida, e
seduziu-a com uma criatividade difícil de igualar. Besuntou-se com sangue e
deixou-o escorrer pelo corpo, até ficar seco. Utilizou excrementos de cabra e
urina de bode velho para se perfumar. Não usou palavras, porque a voz não tem o
poder do instinto, as frases, principalmente os poemas, são galhos secos
disfarçados de flores e de troncos viçosos. Não, o pintor apenas riu, sentou-se
junto dela e riu sem parar. E ela, que tivera tuberculose na infância, gostava
de ser galada por poetas enfadonhos e petulantes, extasiou-se com esta
transfiguração fáunica, esqueceu-se
dos amantes e prendeu-se a um louco para o resto da vida.
Saiba
o padre que o desmiolado génio catalão dos bigodes de arame desenhou um carro
alegórico para o corso carnavalesco do Estoril em 1964. Tinha uma girafa
metálica de pescoço flamejante, com cinco borboletas a esvoaçar. Quem o
convenceu a participar no evento da Linha foi o senhor Tortulho, o seu avô —
não o negue — que se deslocou propositadamente a Paris para o aliciar. Dizem
que Dalí ficou tão fascinado com a narigueta do emissário do carnaval estorilense
que acedeu ao pedido. Era uma penca mais exuberante do que a sua, com o
tradicional formato de um cogumelo comestível.
O
diabo do catalão narcísico, que se avaliava a si mesmo como génio, gostava tanto
de girafas como de muletas. Alguns especialistas afirmam até que estas aparecem
em todas as suas telas, embora não sejam facilmente percebidas. Umas e outras
revelam as suas fantasias libidinosas da infância e a ostentação fálica da sua
obra. Para mim, Dalí pode resumir-se no seguinte palavreado: em toda a paisagem
crepuscular e estéril existem muletas que sustentam a desintegração e girafas
onanistas que ejaculam purulências. Louco, padre, é o que ele era, e por ter
consciência disso achava que não o era, como todos os doidos.
A
noite passada vi o desenho que postou na sua página secreta do facebook, padre.
Lá está a girafa de Dalí a dar dentadas no cocuruto de uma mulher esplendorosa,
dotada de um pénis que se estende pela paisagem inóspita e termina em duas mãos
que rezam. Compreendo muito bem o significado: há muita coisa a esconder porque
a mente humana é um bordel e um açougueiro que estão no interior de uma igreja
e por isso têm angústias.
Não
me interessa o que aconteceu ao Silveira, mas estou de olho em si. Não se meta
comigo, padre!
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