Embora
gostasse de me anular, a mim, o narrador, de me limitar a recolher e a
organizar as pérolas documentais que engordam este caso retumbante, que
assombrou as cabeças de todos os que deram conta da sua existência, a verdade é
que, de vez em quando, sinto que este processo necessita do meu contributo
narrativo para esclarecer a sequência e edulcorar a brutalidade insólita dos
acontecimentos. Todo o material que aqui divulgo tem origem na investigação
realizada a posteriori (malditos
filósofos!) pela minha prezada amiga inspetora Zé Pereira, pessoa de
elevadíssimo gabarito intelectual, que acumula, com a profissão de polícia,
muitas outras competências, tais como cartomante, astróloga, quiromante,
massagista, apreciadora de vinhos e técnica de endireitação de pernas de
galinha. Poderão pensar, aqueles que
me lerem, que esta última competência é mesquinha, ridícula mesmo, mas a verdade
é que ela exige uma técnica muito fina e rigorosa, que não está ao alcance da
chusma. A inspetora concretiza esta
sabedoria prática do conserto das pernas das aves na aldeia de Bico Calado, uma
povoação que se destaca ali para os lados da Lourinhã, conhecida pelo facto de
todos os habitantes adorarem galinhas vivas e as deixarem andar em liberdade,
debicando as ervas e quase tudo o que encontram, tornando quase todos os
recantos visíveis desprovidos de vegetação, pequenos mamíferos, repteis,
insetos e caracóis... Por isso não é de estranhar que a alimentação usada por
essas bandas seja constituída por peixe e ovos. Sempre que chega lá, ao fim de
semana, a nossa inspetora tem à sua espera vários animais com os ossos das
pernas, nomeadamente, como diria o Chefe Abrantes, tíbias e fíbulas,
fracturados por atropelamentos, dentadas de cães vadios, lutas de galos,
atração por buracos indevidos e pontapés de rapazes vindos de outras aldeias e
que jogam à bola com elas antes de os donos darem por isso e os expulsarem,
também ao pontapé. Pele de toucinho, tiras de cana, azeite, cascas de ovo e
ráfia são os únicos materiais que ela usa, mas com uma capacidade regenerativa
que roça a perfeição. Muitos tentaram, durante a sua ausência, arremedar esta
prática, mas os resultados foram sempre os mesmos: galinhas com um coto a ver o
chão do alto e a perna boa a tentar afanosamente muscular-se para aguentar
sozinha com o peso do animal.
Segundo o que eu ouvi à inspetora, e que faz
todo o sentido, o Chefe Abrantes conseguiu juntar, na esplanada do café Safari,
o Cê e o Firmo Formigal, na tentativa desesperada de uma frase inspiradora que
lançasse alguma luz no seu entendimento, cada vez menos fecundo.
A primeira coisa de que o Cê falou não tinha nada que ver com os homicídios, tratou-se apenas de informar o Abrantes de que tinha visto um comediante muito gordo, de nome F. Mendes, filho de outro comediante muito gordo que fazia o público rir por mostrar a barriga, entrar no restaurante Traquitanas, que fica do outro lado da rua, atafulhar-se de febras e bebida e ficar entalado na porta quando se preparava para sair, tiveram de vir os bombeiros de Alcabideche para o desentalarem — como era um artista trouxeram a fanfarra — e isto era mais uma prova de que o Cê é o maior, não ele, Jacinto, mas o verdadeiro Cê, ninguém escapa à sua vigilância e à sua balança compensatória, cá se fazem cá se pagam, muito riso traz choro e muito choro traz riso e quer se trate de comédia ou de tragédia apenas há que bater palmas ao maior, que é o Cê.
A primeira coisa de que o Cê falou não tinha nada que ver com os homicídios, tratou-se apenas de informar o Abrantes de que tinha visto um comediante muito gordo, de nome F. Mendes, filho de outro comediante muito gordo que fazia o público rir por mostrar a barriga, entrar no restaurante Traquitanas, que fica do outro lado da rua, atafulhar-se de febras e bebida e ficar entalado na porta quando se preparava para sair, tiveram de vir os bombeiros de Alcabideche para o desentalarem — como era um artista trouxeram a fanfarra — e isto era mais uma prova de que o Cê é o maior, não ele, Jacinto, mas o verdadeiro Cê, ninguém escapa à sua vigilância e à sua balança compensatória, cá se fazem cá se pagam, muito riso traz choro e muito choro traz riso e quer se trate de comédia ou de tragédia apenas há que bater palmas ao maior, que é o Cê.
— Que diabo é que isso tem a ver com os
homicídios, nomeadamente? — Exasperou-se o Abrantes.
— Porra, Chefe! As mortes também são do Cê!
Sabes quem é que estava a comer febras com o cómico? Nomeadamente…não sabes!
Era o padre, o gajo a quem batem palmas. Estás a ver?
— Ah! O padre! Nomeadamente o padre. Sempre o
padre! Não me cheira bem, nomeadamente aqui. E você, Firmo? O que acha?
— Sim, parece mesmo vomitado.
— Chiça, as mortes, falo das mortes,
nomeadamente as dos que morreram mesmo!
O Firmo começou então a derramar a sua
incomensurável intelectualidade no cérebro confuso do Abrantes. O caso ainda se
apresentava totalmente indecifrável porque não tinha nome. Contrariamente ao
que as pessoas vulgares pensam, os nomes não são simples etiquetas, não, eles
têm o poder de transformar a realidade, ser Firmo não é o mesmo que ser
Flácido, as palavras entranham-se nas coisas e insuflam-lhes uma nova forma de
existir. Quando andava na Faculdade, por exemplo, a aprender Filosofia, os
professores possuíam características idênticas às das pessoas comuns: um cuspia
perdigotos enquanto falava entusiasticamente de Descartes, outro dava aulas
sentado e baixava-se a toda a hora para mexer nos atacadores dos sapatos, outro
ainda bebia cerveja e esbugalhava os olhos, outro comia as alunas com os olhões,
existia também outro que ficava com os movimentos suspensos enquanto a caspa se
acumulava nas enormes golas da sua camisa preta… Se os alunos atentassem apenas
nestes comportamentos, debandariam rapidamente dali para encontrar algo mais
promissor. Mas não era o que eles diziam ou faziam que tinha realmente
importância, o que interessava era terem o nome de Professores Doutores de Filosofia.
Era aí que tudo ganhava sentido. Também as operações policiais têm de possuir
um nome para terem esperança de sucesso. O Firmo ensinara isso a milhares de
investigadores e ele próprio nomeara várias dessas investigações: apito ferrugento,
chave torta, fidalgo paralítico, primos maralha, limpeza sebenta, cabeça de
galhos… Tantos, tantos nomes! E tudo com sucesso! Depois de apelidar a operação
o Chefe Abrantes tinha de compreender várias coisas sine qua non valia a pena marrar mais, a saber: distinguir pessoas
de coisas e de outros animalejos; conhecer bem os quatro pontos cardeais e
entender que há sempre um portal para uma nova dimensão; não abusar das
secreções da próstata porque enfraquecem o raciocínio; aceitar qualquer pista,
mesmo as de motociclismo; procurar alguém que dê um aperto de mão do tipo peixe
molhado, porque esse tem sérias possibilidades de ser o assassino, excepto se
não o for, o que é muito pouco provável se tivermos fé.
— Porra! — Exclamou, por esta altura, o
Abrantes, cada vez mais confuso. — Que raio é isso de peixe molhado?
— São aqueles gajos que fazem a mão mole e
suada para cumprimentar os outros. E fria. Há muitos.
— Mas o padre não cumprimenta assim!
— Nunca se sabe, nunca se sabe, pode estar a
esconder-se — aclarou o Firmo.
Olharam os três para o lado, em simultâneo, e
repararam que a dona do Safari, a Laura, estava ao lado deles com uma enorme
faca pontiaguda na mão, era a primeira vez que a viam cá fora.
— Tenho de arrumar as cadeiras. É tarde.
— Porquê a faca? — Perguntou o Chefe.
— Nunca se sabe. É melhor prevenir do que
remediar.
Sem comentários:
Enviar um comentário