O Cê é o dono disto tudo
(monólogo do JC com o chefe Abrantes
à porta do café Safari)
Olha Abrantes,
sei que andas desconfiado do Padre e tens razões para isso, essa gente não é de
confiança, dizem que são pastores mas, cá para mim, são mas é lobos, e dos maus,
todos me chamam Jacinto do Cê porque sabem que para mim o dono disto tudo é o
Cê, desculpa estar com este rameuméu mas é a mais pura das verdades, o pessoal
sabe disso muito bem, basta ouvir as conversas do dia-a-dia para o perceber,
tudo pertence ao Cê, os animais, as plantas, os filhos, as mulheres, os amigos,
a vida, o mundo, o próprio Cê, porra!, toda a gente diz que pertence a ele
próprio, é por isso que eu fico raivoso quando vejo baterem palmas aos padres, ou
a qualquer outro que não seja o Cê, quando andei na tropa também era a mesma trampa, chegava
o coronel ou o simples tenente e pronto, toda a gente estava em sentido,
batendo palmas a qualquer bazófia que lhes saía da boca, só o Chaimite é que
não ligava nenhuma, era magro como um esqueleto e ruço e mijava na cama, tinha
os dentes da cor da caca das crianças e estava sempre a tirar macacos do nariz,
a enrolá-los e a ameaçar limpá-los à farda do mais próximo, ria, mostrando
aquelas tacholas enormes, e quando passava o coronel ele não se punha em sentido,
metia os ossos da mão no bolso roto das calças e acariciava o fueiro, "estou
a batê-las" dizia, enquanto os outros lambiam as botas do coronel, por
fim acharam que era maluco e mandaram-no para casa, à saída do quartel ele voltou-se e riu, num riso asmático,
mostrando as dentuças amarelentas, tirou um macaco do nariz, amassou-o bem e
colou-o, com todo o cuidado, nos ferros do portão, e depois lá foi, rindo e
massajando o fueiro, feliz da vida por não bater palmas, no oeste americano
ninguém batia palmas ao Jesse James e o Jesse James era o maior, sacava das
pistolas com a rapidez de um foguete e bum, bum, era só matar, eles caíam no
pó como espantalhos, uma vez chegou a uma cidade e estavam oito à espera dele, desceu do cavalo, coçou-lhe o
focinho, prendeu-lhe as rédeas, os outros estavam cagados de medo, e então ele
voltou-se como um diabo, antes de sacar as pistolas já as tinha nas mãos, deu
um salto enorme, cuspindo chumbo, e eles começaram a cair com a admiração
estampada na cara e a vida a esgotar-se por um buraco entre os olhos, ficaram
estendidos no pó da rua, e o Jesse James soprou o fumo das pistolas, meteu-as
nos coldres, passou por entre a multidão batendo com os tacões, entrou no salão,
que era o Safari lá do sítio, e pediu um uísque duplo, bebeu de um trago, saiu,
olhou tudo e todos com desprezo, montou o cavalo e afastou-se a trote, e só
então o povo arranjou coragem para bater palmas, bateu durante a tarde inteira,
até o cangalheiro esqueceu o seu trabalho, até os mortos se levantaram para
mandar com as mãos uma na outra, o Napoleão, que foi talvez o gajo mais esperto
que já existiu, a seguir ao Cê, nunca batia palmas a ninguém e era o maior,
era o Jesse James francês, foi ao Egito e trouxe de lá um calhau com cem
toneladas e agora todos os que passam por Paris gritam "olha o calhau do
Napoleão", mas ele nunca batia palmas a ninguém, trazia sempre a mão
direita enfiada no casaco, e essa mão tinha seis dedos, um deles enorme que
servia para enfiar no rabo de todo o mundo, só foi lixado pelos comunistas,
apanharam-no no meio da neve, cheio de frio e mataram-lhe os soldados todos, mas
não se atreveram a tocar-lhe, o Dom Afonso Henriques também não batia palmas a
ninguém, nasceu já com a sua espada enorme na mão, dizem que abriu caminho
através da barriga da mãe e que foi um dos primeiros a nascer de cesariana
invertida, na verdade ele nunca gramou a progenitora, passava o tempo a
fazer-lhe tropelias e a ameaçá-la com a espada e quando cresceu dava-lhe cada
coça que até fervia, mas o que ele queria mesmo era matar mouros, se estava
muito bem a descansar depois de uma conquista e ouvia falar de um castelo de
sarracenos endiabrava-se, montava-se no cavalo e lá ia ele a galope, brandindo
o espadalhão faiscante, tinha mais força do que um urso porque a espada pesava mais
de vinte quilos, todos fugiam à frente dele mas a admiração pela sua passagem
era tanta que logo decidiam segui-lo, pessoas, animais terrestres e aves corriam
ou voavam atrás dele num alarido medonho que espavoria os mouros, foi assim que
o nosso primeiro rei conquistou este país, e dizem que, no seu modo abrutalhado
de lidar com tudo, tinha um cavalo a quem chamava porco quando queria
espevitá-lo, e querendo que este corresse mais depressa gritava “porco
galllll”, o que, querendo dizer “porco galopa”, foi entendido como Portugal e
todos pensaram que era o nome do país que queria conquistar, o nosso rei
fundador foi uma categoria, um verdadeiro homem do Cê, por isso é que eu digo,
Abrantes, a malta de boa cepa desconfia dos padres.
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