Há muito tempo que não escrevia com uns sapatinhos ecco, um coletinho xpto e o cabelinho bem alinhado. Vou adequar a minha narração ao
meu estado vestimenteiro.
Quando bateram à porta, o Abrantes acabara de confrontar o padre
com as suas suspeitas.
“Sei que é homem de Deus, nomeadamente, que diabo, mas tenho de
lhe dizer que estou muito desconfiado de si. Esta história dos ellog, deus me
perdoe, nomeadamente, que diabo, ainda acicata mais os meus barruntos. Parece
não estar bom da cabeça! Lamento ofendê-lo mas vai ter de me esclarecer, de forma
clara e verdadeira, nomeadamente sem mentir, onde é que estava enquanto
ocorreram os lamentáveis homicídios que vitimaram tanta gente, nomeadamente as
vítimas.”
Foi só nesse momento, recordo-me agora, que o sacerdote exclamou
que os ellogs estavam a chegar.
Tenho de falar aqui, pois julgo ser o momento perfeito para isso,
das cogitações sobre a memória desenvolvidas pelo Firmo Formigal. Na verdade,
diz ele, tal coisa não existe, é uma invenção criada pela desigualdade social
para manter os privilégios dos ricos e acomodar os miseráveis. O primeiro homem
que, como muito bem visionou Rousseau, se apaixonou pelo direito de primeiro
ocupante e decidiu tornar-se sujeito acumulador de bens, criou duas ferramentas
para o conseguir: a ideia de memória e o conceito de lei. Munido destas duas
armas implacáveis, ei-lo que partiu, com os seus pares, à monstruosa conquista
da vaidade.
O Firmo comove-se com a crueldade que acompanhou o
desenvolvimento das sociedades primitivas, Alguns seres humanos tornaram-se
donos dos outros, fundamentados na criação de leis e no conceito de dívida,
instrumentalizando a força jurídica e a guerra. O direito é a arma mais
eficiente dos poderosos: é, incomparavelmente, a que traz mais resultados com
menos custos. Com essa ferramenta bélica, os detentores da riqueza e da
propriedade produzem uma outra arma poderosíssima: a ideologia. Pelo sortilégio
da contaminação ideológica da memória, os mais privilegiados conseguem fazer
com que as suas regalias sejam defendidas pelo resto da sociedade. Eles já não
têm de se preocupar com os seus bens, os outros tratam disso, mesmo que não
possuam nada de seu, mesmo que sejam mais pobres do que muitos animais
selvagens.
A lei, ao criar o
sucesso exagerado de alguns, gera nos restantes uma doença irrefreável, um
veneno obsessivo, uma compulsão para defender a ideologia que é a fonte das
suas desigualdades, misérias e alienações. Os que pouco ou nada têm de valor
vivem na expectativa do reforço vicariante e fixam-se numa tripla ilusão: a
primeira é a do topo, a da possibilidade de virem a ser iguais aos que estão
acima deles; a segunda é a da perda, a de que se a lei não for respeitada
poderão perder o pouco que têm e tornarem-se ainda mais desfavorecidos,
tristes, pobres e miseráveis; a terceira é a da moralidade, o sentimento de que
existe uma ordem que transcende as convenções humanas e que dá uma significação
profunda ao sistema jurídico. Mas nada disto seria possível sem a ideia
execrável de memória. A velha ilusão de que esta recolhe, arquiva e recupera é
a invenção mais estapafúrdia, ou espatafúrdia,
como dizem no café safari, de todas
as que já adulteraram a sanidade da criação. É um tumor obsceno que fomenta a
gangrena da vida social, que devia ser uma comunidade de seres criativos e
livres e não passa de um rebanho de arquivistas. Os vampiros chupadores da
populaça fortaleceram até a dispersão da ideia através da promoção das escolas
e dos sistemas de ensino. As crianças começam a ser maltratadas
muito cedo, por volta dos cinco anos de idade. Fecham-nas em salas sombrias
durante quase todo o dia e impedem-nas de brincar, instruindo-as simplesmente
com coisas de adultos, fastidiosas para a maior parte delas. Não podem falar
livremente e são ensinadas a replicar conhecimentos, atitudes, ideologias,
normas e hábitos. Obrigam-nas a permanecer assim durante doze anos, comparando-as
continuamente umas com as outras, promovendo, nelas, sentimentos profundos de
inferioridade e discriminando severamente as mais inseguras e as que não
conseguem suportar o sistema e se revoltam. O ensino é, toda a gente sabe isso,
uma estratégia horrível de domesticação social, uma forma de reproduzir os
comportamentos facilitadores do sistema económico e social predominante, uma
forma de pregar o catecismo do blá...blá... da memória. Até existe uma artimanha
intelectual que se chama História e que pretende fazer crer na objetividade do
passado! “Saiam dessa!” Avisa o Firmo. A cabeça do ser vivo não precisa de
arquivo, quer fantasia e liberdade. As pedras sim, estão próximas da memória
perfeita.
Admiro a sabedoria discursiva do Firmo,
devo confessar. Mas o mais extraordinário é que às vezes quero que ele
desenvolva mais o assunto mas o safardana olha-me com ar assarapantado e pergunta-me
“Que Memória? Não me lembro!”
Voltando àquela noite, que já me dispersei
bastante, depois de baterem à porta e o Chefe Abrantes mandar entrar, não irromperam
por ali dentro os ellog, como parecia esperar o padre Tortulho, mas entrou simplesmente
o guarda Canelas, rosado e esbaforido, que disse:
“Depressa Chefe! O Gordo está morto na casa
de banho do restaurante Traquitanas, sufocado, atafulhado com bifanas pela goela abaixo!”
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