domingo, 4 de fevereiro de 2018

38 - A GRANDE MENTIRA DA MEMÓRIA E UM CÓMICO MORTO ATAFULHADO DE BIFANAS

Há muito tempo que não escrevia com uns sapatinhos ecco, um coletinho xpto e o cabelinho bem alinhado. Vou adequar a minha narração ao meu estado vestimenteiro.
Quando bateram à porta, o Abrantes acabara de confrontar o padre com as suas suspeitas.
“Sei que é homem de Deus, nomeadamente, que diabo, mas tenho de lhe dizer que estou muito desconfiado de si. Esta história dos ellog, deus me perdoe, nomeadamente, que diabo, ainda acicata mais os meus barruntos. Parece não estar bom da cabeça! Lamento ofendê-lo mas vai ter de me esclarecer, de forma clara e verdadeira, nomeadamente sem mentir, onde é que estava enquanto ocorreram os lamentáveis homicídios que vitimaram tanta gente, nomeadamente as vítimas.”
Foi só nesse momento, recordo-me agora, que o sacerdote exclamou que os ellogs estavam a chegar.
Tenho de falar aqui, pois julgo ser o momento perfeito para isso, das cogitações sobre a memória desenvolvidas pelo Firmo Formigal. Na verdade, diz ele, tal coisa não existe, é uma invenção criada pela desigualdade social para manter os privilégios dos ricos e acomodar os miseráveis. O primeiro homem que, como muito bem visionou Rousseau, se apaixonou pelo direito de primeiro ocupante e decidiu tornar-se sujeito acumulador de bens, criou duas ferramentas para o conseguir: a ideia de memória e o conceito de lei. Munido destas duas armas implacáveis, ei-lo que partiu, com os seus pares, à monstruosa conquista da vaidade.
O Firmo comove-se com a crueldade que acompanhou o desenvolvimento das sociedades primitivas, Alguns seres humanos tornaram-se donos dos outros, fundamentados na criação de leis e no conceito de dívida, instrumentalizando a força jurídica e a guerra. O direito é a arma mais eficiente dos poderosos: é, incomparavelmente, a que traz mais resultados com menos custos. Com essa ferramenta bélica, os detentores da riqueza e da propriedade produzem uma outra arma poderosíssima: a ideologia. Pelo sortilégio da contaminação ideológica da memória, os mais privilegiados conseguem fazer com que as suas regalias sejam defendidas pelo resto da sociedade. Eles já não têm de se preocupar com os seus bens, os outros tratam disso, mesmo que não possuam nada de seu, mesmo que sejam mais pobres do que muitos animais selvagens.
A lei, ao criar o sucesso exagerado de alguns, gera nos restantes uma doença irrefreável, um veneno obsessivo, uma compulsão para defender a ideologia que é a fonte das suas desigualdades, misérias e alienações. Os que pouco ou nada têm de valor vivem na expectativa do reforço vicariante e fixam-se numa tripla ilusão: a primeira é a do topo, a da possibilidade de virem a ser iguais aos que estão acima deles; a segunda é a da perda, a de que se a lei não for respeitada poderão perder o pouco que têm e tornarem-se ainda mais desfavorecidos, tristes, pobres e miseráveis; a terceira é a da moralidade, o sentimento de que existe uma ordem que transcende as convenções humanas e que dá uma significação profunda ao sistema jurídico. Mas nada disto seria possível sem a ideia execrável de memória. A velha ilusão de que esta recolhe, arquiva e recupera é a invenção mais estapafúrdia, ou espatafúrdia, como dizem no café safari, de todas as que já adulteraram a sanidade da criação. É um tumor obsceno que fomenta a gangrena da vida social, que devia ser uma comunidade de seres criativos e livres e não passa de um rebanho de arquivistas. Os vampiros chupadores da populaça fortaleceram até a dispersão da ideia através da promoção das escolas e dos sistemas de ensino. As crianças começam a ser maltratadas muito cedo, por volta dos cinco anos de idade. Fecham-nas em salas sombrias durante quase todo o dia e impedem-nas de brincar, instruindo-as simplesmente com coisas de adultos, fastidiosas para a maior parte delas. Não podem falar livremente e são ensinadas a replicar conhecimentos, atitudes, ideologias, normas e hábitos. Obrigam-nas a permanecer assim durante doze anos, comparando-as continuamente umas com as outras, promovendo, nelas, sentimentos profundos de inferioridade e discriminando severamente as mais inseguras e as que não conseguem suportar o sistema e se revoltam. O ensino é, toda a gente sabe isso, uma estratégia horrível de domesticação social, uma forma de reproduzir os comportamentos facilitadores do sistema económico e social predominante, uma forma de pregar o catecismo do blá...blá... da memória. Até existe uma artimanha intelectual que se chama História e que pretende fazer crer na objetividade do passado! “Saiam dessa!” Avisa o Firmo. A cabeça do ser vivo não precisa de arquivo, quer fantasia e liberdade. As pedras sim, estão próximas da memória perfeita.
Admiro a sabedoria discursiva do Firmo, devo confessar. Mas o mais extraordinário é que às vezes quero que ele desenvolva mais o assunto mas o safardana olha-me com ar assarapantado e pergunta-me “Que Memória? Não me lembro!”
        Voltando àquela noite, que já me dispersei bastante, depois de baterem à porta e o Chefe Abrantes mandar entrar, não irromperam por ali dentro os ellog, como parecia esperar o padre Tortulho, mas entrou simplesmente o guarda Canelas, rosado e esbaforido, que disse:

       “Depressa Chefe! O Gordo está morto na casa de banho do restaurante Traquitanas, sufocado, atafulhado com bifanas pela goela abaixo!”

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