sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

39 - A LUTA DE CLASSES À PORTA DO CAFÉ SAFARI

Saíram todos numa confusão tal, que o Abrantes teve de acalmar o grupo, pleonasmando: "Sosseguem, sosseguem, que isto assim até parece, nomeadamente, uma anarquia sem chefes!"
Diante da porta, como numa absurda homenagem ao cómico gordo, que tantas vezes ficara entalado, também aquela molhada estava incapaz de a franquear.
O Chefe Abrantes estabeleceu prioridades. Primeiro ele, depois o Padre, depois o Firmo, por fim o Canelas. Não sei se havia mais pessoas. Talvez o Cê, não? Mas como ficou claro, no episódio anterior, que a memória é apenas uma farsa e um instrumento de opressão, era o que me faltava que fosse agora preocupar-me com isso.
Chegados ao Safari, depararam-se com a situação que a Inspectora Zé Pereira continuou a narrar.
O gordo estava à porta (notem, porque pode não ser irrelevante, que, nesta história, há sempre portas...), deitado no chão, camisa aberta, o enorme bandulho saltando das calças, uma palidez cadavérica, que levou Abrantes a concluir: "Está, nomeadamente, morto de todo."
Inclinada sobre ele, encontrava-se uma bela rapariga. A Zé Pereira parecia ter engolido um guia de clichês, descrevendo-a: "Olhos azuis como opalas, pele leitosa, cabelos cor de trigo." Analisava o pobre homem, e preparava-se para lhe fazer a autópsia.
"Aqui?!", espantou-se o Firmo.
"Tem de ser. Não há tempo a perder", ouviu-se a uma voz de barítono, que impunha respeito.
Olharam para o proprietário da voz. Era realmente um proprietário. Um homem de um grisalho sofisticado, unhas tratadas, anel de brasão, boquilha, fato feito à medida.
Estavam perante um mito encarnado. Havia quem lhe chamasse o Conde, quem lhe chamasse o Lord, ou apenas Hugo Boss. Era o inspector mais temido, e respeitado, e medalhado, e invejado, na polícia portuguesa. Mas até os franceses e os ingleses o mencionavam com temor e consideração. Parece que os belgas também.
Chefe Abrantes aproximou-se dele. Encontravam-se frente a frente, o Chefe muito mais baixo, desleixado, envelhecido, a perder cabelo e dentes, fumaçando beatas.
"Fazer uma autópsia porque o homem, nomeadamente, comeu de mais, que diabo!?"
"Aí é que está", retorquiu a voz polida, com um quase imperceptível tom de ironia: "Não acredito que tenha sido um acidente. Ele não comeu de mais! As bifanas é que o comeram!"
"Prendemos então, nomeadamente, as bifanas-assassinas?", zombou Abrantes.
Formigal, observando o despique, terá pensado de si para si: Meu Deus! Isto é a ilustração, no particular, da luta de classes. Aposto em Abrantes, apesar de tudo. O futuro pertence-lhe.
"Não", respondeu o Conde. "As bifanas foram o instrumento do crime. E eis o assassino."
Um dedo impecável, de uma elegância inconcebível, esticou-se e apontou.

Sem comentários:

Enviar um comentário