Estou de novo com os meus sapatinhos ecco, um coletinho xpto e
o cabelo ainda alinhado pela vaidosa insistência dos dentes do meu pente Tomas Veres, feito de vistosa prata e que
acomodo religiosamente na sua dispendiosa case de couro de avestruz colorido de azul. Na
verdade, sinto-me arreitado, paramentoso, acasquilhado, janota, enfarpelado, já
que as minhas propriedades, nestas situações, não regateiam sinónimos — torno-me
um samouco de primor. Tenho de fazer aqui um reparo ao fio da minha narração:
por lapso da memória indiquei o Safari
como o local da morte do cómico gordo, cantor e adepto fervoroso do Benfica —
justificava o seu clubismo pelo facto de a mãe ser muito avantajada e Benfica
querer dizer “filho de uma calmeirona”. Na verdade, o último suspiro ocorreu
nas casas de banho do Restaurante Traquitanas, como dissera anteriormente. A
memória é uma coisa lixada, um zêzere indómito que, na sua turbulência excessiva,
quer galgar as margens e recriar continuamente o seu leito. Conheci uma senhora
idosa que desenvolveu a ideia de que, quando saía para o seu jardim em roupas
íntimas, se podia esconder dos seus vizinhos atrás do cabo de uma vassoura, se
eles falavam com ela julgava que eram malucos e tinham alucinações — pois como
é que podiam vê-la se ela se escondia assim desde criança e sabia perfeitamente
que se tornava invisível!?
Convém fazer aqui outra correção, de pouca importância, é certo,
mas necessária para manter a precisão: quando a inspetora Zé Pereira afirmou
que a bela rapariga estereotipada se preparava para fazer a autópsia ao morto,
isso não significa que a iria realizar ali, é um modo de enfatizar, a moça
entusiasmava-se, de tal forma, com a dissecação dos corpos que, mal tomava
conhecimento da desgraça alheia, ficava inebriada com os preparativos mentais das
ações de retalhamento dos músculos e das vísceras, nomeadamente, como diria o
Chefe Abrantes. Sei que o Firmo chegou a discutir com ela a confusão que muitas
vezes se gera entre os termos encetar e enxertar, pois muitas pessoas julgam
que a primeira ação é encetar mas não é, a primeira é enxertar, introduzir as
ferramentas no corpo frio e só depois é que se enceta, começando a tirar
metodicamente as porções de tecido necessárias à investigação. “Temos de ser
rigorosos” rosnava o Firmo, amante extremo de todo o esmiuçamento da realidade.
Quando o Conde, também apelidado de Lord e Hugo Boss, apontou o
seu dedo indicador direito que, embora impecável e elegante, não possuía meias luas
— a inspetora Zé Pereira, na sua versão astróloga, sabia muito bem que a falta
delas era sinal inequívoco de afeções físicas e mentais — quando ele esticou o
indicador, repito, todos lhe seguiram ansiosamente a direção e o sentido, para
descobrirem quem fora o assassino e ilibar as bifanas. O dedo disparava, como
uma arma, o projétil da culpa direitinho para o peito do padre Tortulho.
Fez-se silêncio.
“Você?! Foi você nomeadamente!?” Exclamou o Abrantes.
“Eu? Estão doidos ou quê? Estive sempre com vocês.”
“Não é verdade!” Contrariou o Formigal. “Desapareceu do Safari
pelo menos 10 minutos. Lembro-me bem.”
“Ora essa! Fui à casa de banho. Também tenho necessidades, faço
como os outros, Deus não livra os padres da m…”
O Tortulho, embora membro da Santa Amada Igreja, disse mesmo o
palavrão, todos o ouviram, era soft
na boca de pessoas profanas mas na boquinha de um padre tinha a dimensão dos
Himalaias.
“Como é que eu tive tempo para cometer o
crime? E porquê fazê-lo se ele sempre foi o meu melhor amigo?”
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